04 - Segunda Condicional - "Ver não é enxergar"

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04 - Segunda condicional - Ver não é enxergar

Ficar em casa era fácil. Eu ouvia a tv, mudava de canais sem o menor problema, me movi pela casa por madrugadas demais para precisar ver, e minha mãe estava tomando cuidados extras para manter as coisas no lugar. Mas já faziam dois dias, e estávamos quase surtando. Eu tentava levar no bom humor, mas já começava a pensar no pior.

- Mãe, por favor!

- MARVIN!

- Eu to cego, poxa. Quero sentar na praça com óculos e bengala, fazer nada lá. Todo filme tem um cego assim!

- Como você consegue menino? De verdade!? O que disso é engraçado?

- Nada... Mas eu sei que os médicos não vão me ajudar, eu preciso passar por essa por minha conta, como no caso do bebê. E eu poderia começar por uma praça. Ser o cego que me tornei. Olha, isso soa legal...

- Tudo bem, vou levar você. Não acredito que eu to cedendo... Mas você não pode voltar sozinho, tem que me esperar. Só assim!

- Fechado!

Pouco tempo eu estava devidamente sentado na sombra de uma arvore frondosa numa praça não muito longe daqui de casa. O dia estava calmo, e eu não ouvia nenhuma música alto ou gritaria. Então eu tentei mudar minha forma de ver as coisas. A grama da praça havia sido cortada, aquele cheiro de grama molhada no ar. Eu ouvia os carros e ônibus passarem na via mais abaixo. Conversas indistintas e crianças brincando. Eu não via, mas percebia. Não que meus ouvidos e nariz tivessem melhorado, eu apenas dependia mais deles.

- Marvin?

- Dona Vera, não é? Obrigado pelo outro dia. - reconheci a voz da senhora.

- Sim. Ah meu filho, você ficou cego mesmo?

- Os médicos acreditam que é temporário...

- Vai ficar tudo bem, meu filho. Seja paciente.

- Obrigado, eu tenho sido.

- Eu só queria te perguntar uma coisa, posso?

- Claro! O que é?

- Por que raios é que você começou a cantar a música da galinha? - ela caiu numa gargalhada maravilhosa e eu também tive que rir.

- Eu tenho crises de ansiedade, então eu tenho algumas técnicas para evitar o pânico, cantar é uma delas, especialmente músicas bobas ou engraçadas.

- Acontece muito?

- Eu já cantei "Robocop Gay" durante um assalto, Dona Vera. - admiti resoluto.

- Menino! - e caiu no riso de novo.

Ela contou algumas coisas sobre a rotina, o susto que levou comigo, perguntou sobre minha música e passou um tempo comigo. Não sei ao certo quanto tempo passou, mas minha mãe chegou com Tina e Mira. E nos sentamos os cinco. Por algum motivo, a conversa virou "falem do Marvin", elas contavam para Dona Vera todo tipo de coisa constrangedora sobre mim. Sempre assim. Devem ter sido as primeiras risadas em dias.

Valeu, Dona Vera.

***

Minha mãe estava relutante em ir trabalhar e me deixar em casa só. Tivemos que fazer alguns ajustes dado a minha nova condição. Recebi uma dispensa médica para o trabalho e para a faculdade o que ia acalmar os ânimos por um tempo. Não enxergar tem me mostrado uma nova "ótica" sobre diversas coisas nas quais eu nunca havia reparado muito: a sala de jantar era o lugar mais frio da casa e quando as janelas certas estavam abertas, ela ganhava uma brisa permanente. Meu vizinho da esquerda gostava de ouvir modão de viola e a família que morava a direita ouvia toda manhã as pregações de uma padre. Eu até gostei do padre, sujeito simples e humilde.

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