8 de janeiro. Acordei por volta das seis e meia da manhã. Os meus olhos abrem-se a custo, são pesados e ardem-me como uma chama. O chão é gélido. Está escuro e frio; as persianas do meu quarto continuam corridas e a porta do meu quarto trancada. Ainda tenho uma mancha de água à minha beira, mas menor. De início não me lembro de nada, olho para cima, para o candeeiro. Um arrepio percorreu o meu corpo e tudo vem à cabeça. Estática. Ouço gotas de chuva. Ainda é noite, tudo parece como se nada se passasse, e seria esse o meu desejo, mas passou. Levanto-me, a minha cabeça vai explodir, olho outra vez para o meu diário. Lágrimas fracas rolam pela minha face, fecho aquele livro diabólico. Arrasto-me até à cama, que está fria. Cubro-me e adormeço com o barulho de gotas de chuva, que dantes me parecia tão agradável e agora me parecem apenas lágrimas de alguém que sofreu também.
Acordei uma hora depois, estava atrasada para a escola, mas antes de lá ir falei com Jack, que insulta constantemente as minhas tias. E eu só queria que ele se calasse para não ter de conter o choro. Porque eu nunca vou chorar à frente dele. Acho isso lamechas e estúpido. Não gosto de ser a vítima, nem sequer da palavra vítima. Então limitei-me a acenar com a cabeça e concordar com tudo, mesmo não estando a ouvir patavina do que Jack dizia e praguejava.
Quando cheguei à escola, saí do carro do meu pai e nunca me vou esquecer do esforço estúpido que tive de fazer para forçar um sorriso. Mas tudo se facilitou quando vi Kim. Ela fazia-me sorrir, de certa maneira, não sei explicar como. Então antes de entrarmos na sala de aula ainda estivemos a rir, mas o pior... O pior foi quando a aula começou e eu fiquei sozinha. Isso era solidão. Estava toda a gente à minha volta, era história que íamos ter, adoro a disciplina e muito mais a professora. Mas no segundo em que se começou a dar a aula e o burburinho mínimo de sala de aula se instalou, não resisti. Tinha de me torturar. Olhei em meu redor e lembrei-me do dia do funeral de um amigo dos meus tios, eu e Sam viemos buscar as minhas coisas porque eu não podia vir à aula à tarde, vá se lá saber porquê. Sam imitava 007, andava e rebolava por cima das mesas, saltava das cadeiras e dava uma cambalhota aqui e outra cambalhota ali até pegar nas minhas coisas; eu rio-me, está sol. Um dia luminoso, as janelas semi-abertas, consegue ouvir-se o barulho de crianças a brincar no recreio. Sam pega nas minhas coisas e segue a correr, rebola mais uma vez e quase que se atira das escadas. Os raios de sol que trespassam as cortinas fazem-me franzir os olhos. O barulho desaparece, apenas permanece um ruído de adolescentes irritantes que têm necessidade de perturbar uma aula para se sentirem crescidos e independentes. A única luz que me faz franzir os olhos agora é a luz do quadro e do projetor. Apesar de estar rodeada de gente, o dia e a escola nunca me pareceram mais desertos. Fui para casa, o meu pai trouxe -me e a minha mãe estava no espaço dela, a resolver assuntos com a Tia Gloria. Por volta das quatro arranjei-me para ir ao treino e lá fomos eu e o meu pai, mais uma vez, em silêncio. Treinei mal, Bob nem uma palavra disse sobre o meu desempenho. Apenas me disse olá e deu um sorriso amarelo. Quando voltei a casa recebi OUTRA excelente notícia: não posso ir à Dinamarca!! Porquê? Porque para além de já não ter os pais casados e ter perdido a família, a Margaret, a Sortuda, também não tem uma vida económica desafogada, e, como sempre, quando tem uma oportunidade boa de ter uma excelente experiência de vida, não a pode agarrar, porquê? Porque não tem dinheiro. Como se já não bastassem os problemas e falhas que já tinha. Baixei a cabeça e chorei em silêncio, sempre foi costume meu. Mas nunca por assuntos graves.
O meu pai há pouco tempo tinha comprado um telemóvel novo para mim, fui à data desse dia, e lá eu apenas escrevia que ia tirar montes de fotos com Sam e Jack e as tretas que eu escrevia.
Passei o tempo a olhar para fotos, a chorar. Nunca me senti assim. Como uma morte. Uma espada a penetrar a nossa barriga, primeiro de repente e depois lenta e sadicamente. Depois uma mão invisível esgana o nosso pescoço. Empurra o nó da garganta e o mesmo fica dorido até chorarmos. E até aí nos dói. Contorcemo-nos com essas dores. E para completar, um sopro no coração duradouro. E é assim. É assim que se mata uma pessoa sem sequer lhe tocar. Engraçado como só com ações indiretas e palavras podemos magoar e torturar tanto uma pessoa.
Jantei com aquelas pessoas que eram meu pai minha mãe e Jack. Pareciam relativamente bem. Viam as notícias. O meu pai, triste com a situação económica. A minha mãe, preocupada com a situação familiar. Jack, inquieto com o facto de ter ansiedade. Eu... Nada. Morta. Mas com um sorriso, claro. Histérica, claro. Porque eu sempre fui assim. E tenho de ser assim. Senão deixo de existir. A Margaret é feliz, otimista, sempre com um brilho. Pode estar em ruínas, desde que ninguém note tudo bem. E não digo isto com raiva de pessoas ou como vítima. Digo isto porque se deixar de ser feliz, deixo de ser eu. E se deixo de ser eu, morro. E felizmente, a treinar para advocacia, sei fingir. E, modéstia à parte, finjo bem para caraças. Até Jack me ralhou a dizer que devia estar menos histérica e feliz. E o meu pai disse que ainda bem que ao menos eu era feliz. Quis rir-me tanto quando ele disse isso. Cinicamente, claro. Quando o jantar se ia prolongando, eu e Jack começámos a discutir. Ele acabou por se armar e eu fiquei irritada a ponto de o insultar; ele zanga-se e ofende-me, eu saio disparada da sala e os meus pais ralham connosco, embora eu já não os ouvisse. Quando entrei no quarto, estava tudo da mesma maneira. Fui ver o meu computador, cujo fundo de ecrã eram eu, Jack, Sam, Lou, os quatro a rir-nos em casa da Tia Gloria. Ouvi uma música que encontrei no iPod e era uma das músicas que ouvia mais no Natal. E senti um baque no corpo. A visão ficou diferente. Acabou. Um mundo, uma vida, desabou. Vidros e ilusões partiram-se e quebraram a realidade fantasiosa onde eu vivia.
Agora era Margaret Jefferson Woods. Uma rapariga de 14 anos. Um irmão, Jack. Nada mais. Foi um despertar para uma realidade fria e vulgar.
Adormeci com estes pensamentos e durante 1 mês tive-os na minha cabeça. Até fevereiro. Isso... Foi um despertar para outro tipo de "sentimentos", ou melhor dizendo, a extinção deles. Ódio.
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Infância
RomanceMargaret Woods, prazer. Serei narradora da minha própria história, que, como podem deduzir, será completamente influenciada pela minha infância...