Parte 1

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– Então… você já pensou em cruzar a Linha da Vida, Soni? – perguntou Cari.

Por um instante Soni oscilou entre a irritação e o espanto, mas afinal deixou a primeira transparecer em sua face. Não entendia por que Cari insistia naquilo. Lançara a questão de repente, como se não fosse nada, empregando o tom distraído de quem interroga o sujeito sobre o que comeu no café da manhã. Eles só estavam passando um tempo juntos, aproveitando o concerto dos pássaros que ainda viviam, o perfume da grama que ainda não definhara, o vento fresco que ainda não cessara. “E o sol”, mirou-o lá em cima, estreitando a vista e sombreando-a com a palma à testa. “Enquanto ainda brilha e aquece.”

Por que Cari tinha de arruinar o prazer daquele momento? Daqui a pouco já não mais poderiam desfrutar da beleza daquela campina. “É uma egoísta, uma sonsa quando se perde em seus devaneios.” Soni encarou-a enfurecido e percebeu que ela não o encarava de volta. Era como se não aguardasse a resposta dele, o que o aborreceu mais. Teria ela somente pensado alto? Teria falado consigo mesma em vez de dirigir-lhe a questão? “É bem típico dela.”

Todavia Cari repetiu-lhe a pergunta, e com a exata displicência de antes. “Como se minha opinião não importasse.” Ora, e se não importava, qual era o propósito daquele estúpido interrogatório?!

– Você já pensou em cruzar a Linha da Vida?

– Você sabe que não – retrucou Soni. – Não me venha com essa besteira de novo.

– Sim, sei que não. Só queria confirmar se você persistia um covarde – ela rebateu ainda sem arrostá-lo. Fitava a Linha da Vida, isso sim. Se bem que, do lado onde se encontravam, fosse mais correto denominá-la Linha da Morte, porque era o que significava atravessá-la.

– Covarde? Não, não – riu-se. – Considero-me prudente. Chamam a isso de bom senso, garota.

– Chamo-lhe covarde e acomodado. Porta-se como todos os demais.

“Se vai me insultar, ao menos tenha a decência de me olhar nos olhos.”

Soni bufou, resignado, mas Cari não lhe deu atenção. Continuava absorta na Linha da Vida e nos pensamentos mirabolantes que lhe dardejavam a mente. O rapaz viu-a tirar do rosto uma franja que teimava em cobri-lo e imaginou que teria gostado de afastá-la em seu lugar. Embora sua amiga de infância mantivesse o cabelo rente aos ombros para que não a atrapalhasse no ofício de caçadora, sempre havia mechas rebeldes. Reparou-lhe na orelha descoberta: teve ímpeto de alisá-la com a ponta dos dedos, mas conteve-se. “Ela os torceria se eu ousasse fazê-lo.” O desejo cedeu espaço à curiosidade, e ele seguiu o olhar dela e adiante contemplou a Linha da Vida. Franziu o cenho.

– E por que você quer cruzá-la? – foi a vez de Soni de perguntar.

Por que alguém em sã consciência teria vontade de penetrar a soleira da Desolação?! A fronteira natural desenhava-se nítida uma centena de metros à frente de Soni e Cari, quase que margeando o horizonte. Além dela, a campina verdejante transformava-se em relva cinza e ressequida, que se esfarelava ao mais leve dos passos. Na distância remota conseguiam divisar árvores de troncos negros e retorcidos e de galhos nus e estaladiços, remanescentes de uma floresta exuberante que eles e o clã haviam atravessado umas duas semanas atrás. Contava-se que, após a Linha da Vida, inexistia brisa fresca: o ar era estagnado. Inexistia caça: tudo morria. E tudo era silêncio nas terras devastadas, que as aves e feras, se espertas, evadiam-se enquanto lhes restava força – e se ficassem porque força lhes faltasse, só ficavam: não duravam muito. E o céu era escuro ali, como se estivesse de noite, uma noite sem lua e sem estrelas; como se uma muralha invisível encerrasse dentro dos limites da zona morta uma névoa espessa feita a partir do breu de um poço. Ali, a luz e o calor do sol não se propagavam.

Nômades da DesolaçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora