De relance, captou um vulto indistinto à esquerda, mas quando girou o olhar só enxergou um trio de árvores pretas como carvão. Teria sido...? “Ela?” Não, absolutamente: ela estava morta. “Vento.” Sim, fora o vento – provavelmente. “Provavelmente não.” Vento nenhum produzia o ruído que escutara. “E não existe vento na zona morta.” Cari não podia ter ignorado o barulho. Ela era desligada, mas também era uma caçadora. Decerto o ouvira, mas não lhe dedicara atenção, pois não devia ser algo com que se preocupar. Era o mesmo som que o rapaz emitia ao caminhar: o crac crac ausente nos passos da amiga. O crac crac que, por algum motivo, recordava Soni de ossos. As vértebras e ossículos que o Velho Tobi manuseava em certas cerimônias. O esqueleto que todos ofertavam aos deuses após o animal de onde viera ter servido de refeição. Porque, ao contrário da carne que apodrecia, os ossos eram imperecíveis como os deuses. Os deuses que haviam abandonado a mãe de Soni.
O Velho Tobi buscara convencer o rapaz de que sua mãe contraíra a peste oriunda da Desolação por culpa das blasfêmias do pai. Soni não acreditara, não pudera. Pois, por mais curioso que seu pai fosse, a família nunca negligenciara as orações e os ritos. E o adágio que até as crianças recitavam de cor dizia: “Quem cumpre para com os eternos, mantém-se eterno”. A devoção trazia longevidade e, mesmo, imortalidade. Quem cultivava essas tradições restava imune aos ares pestilentos que emanavam das terras devastadas. O rapaz sempre imaginara que os deuses deviam ser donos de um prodigioso humor negro, para conceder a dádiva da imortalidade às pessoas e, ao mesmo tempo, condená-las a fugir perpetuamente da morte a avizinhar-se logo atrás. Quando a mãe terminara refém da praga, Soni decidira que os deuses, além de trocistas, eram cruéis.
– Cari, eu...
– Vamos fazer uma pausa, está bem? – decretou a amiga ao estacar de súbito.
O rapaz anuiu. Desfez-se da mochila e tratou de ajudar Cari a amontoar gravetos para uma fogueira. Enquanto isso investigou os arredores, à cata da fonte do ruído. Teria sido gente enviada pelo clã? Gente enviada para levá-los de volta? Para resgatá-los? “Quem fica para trás, apenas fica.” E mais uma vez o estômago de Soni rosnou, de fome e de nervosismo.
A amiga esvaziou um odre na panela e começou a picar uma cebola e cenouras. Ao longo da viagem a Caravana volta e meia encontrava legumes, verduras e hortaliças selvagens. Uns sugeriam que eram resquícios de fazendas desertas havia décadas. Sob a orientação do pai de Soni o clã providenciara a construção de uma carroça com um caixote espaçoso e profundo, repleto de terra. Nele implantara-se uma horta improvisada e não muito bem sucedida: se a estação e o ambiente favorecessem, alguns alimentos brotavam ali, para estocagem na Carroça dos Mantimentos. Soni e Cari vinham consumindo uma parcela da rara produção que vingara dois meses atrás. Ciente disso, o rapaz não reclamou que tivessem sopa de novo para o desjejum.
– Cari, você... – encetou entre um gole e outro do caldo em sua vasilha.
– Não vai me interpelar novamente sobre nosso destino, vai?
– Não, eu...
– Porque você parece comigo quando era mais nova – ela sorriu. – Ficava importunando meus pais com aquela pergunta sem sentido: “Estamos chegando?”. Como eles não respondiam, eu repetia sem cessar: “Estamos chegando?”, “Estamos chegando?”. – Ela tentara modificar o timbre para o de uma menininha, para simular a voz da pequena Cari. Porém, na acústica incomum da zona morta, a imitação saíra mais bizarra do que o cogitado, como o grasnido de um corvo.
Soni fungou uma risada.
– Heh, creio que toda criança faz isso. Eu fazia também, apesar de à época já saber que jamais chegaríamos a nenhum lugar. Não era nosso objetivo.
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Nômades da Desolação
FantasyCari e Soni são dois jovens que habitam um mundo em vias de desaparecer. São nômades como seus pais, e como os pais de seus pais. Precisam viajar sem trégua, porque atrás deles cresce o terreno dominado pela Desolação, um fenômeno de origens desconh...