Cari virou-se para contemplar o lobo já sobre Soni. Por um segundo seu coração apertou, mas não mais do que isso. Ela acabara de abater quatro animais em sequência, e mais um não era problema. Alinhou três flechas entre os dedos e em instantes engatilhou uma após outra na corda. Em rápida sucessão, todas elas voaram contra a fera, cravando-se duas em seu flanco e uma em sua pata dianteira esquerda. Era uma técnica que Gerion ensinara-lhe, para caçar uma presa que se metesse a fugir ao primeiro disparo. O revés era que a velocidade dos tiros comprometia a pontaria, mas era indiscutível a letalidade do resultado. Nenhum animal tinha fôlego para permanecer de pé depois de uma saraivada daquelas.
Porém o lobo nem se abalou. Sem dúvida sentiu os projéteis espetarem-se fundo, pois a cada ferida a abrir-se ele contorceu-se num breve espasmo de agonia. A pata atingida quase cedeu ao peso do corpo que era mais ossos do que carne. Cari já mantinha pronta a quarta flecha quando o animal lançou-lhe uma mirada insignificante, maxilares trêmulos, porém sorridentes, com dentes lambuzados de vermelho. Não avançou contra ela; continuou em cima de Soni, prensando e abocanhando, refém do instinto, sem medo da morte. E a garota concluiu que os lobos da Desolação não eram mais espertos do que os de fora: eram apenas mais desesperados. “Mais insanos.” Ao atirar mais uma vez, ela mesma provou o sabor do desespero – um gosto pastoso que nunca antes experimentara. A seta perfurou o crânio do animal, que recuou centímetros pela força do impacto, cambaleou entre ganidos falhos, gotejando saliva, e desabou sobre Soni.
O rapaz não se mexia, mas Cari não se permitiu fraquejar. Não era hora para lamentos. Conteve o grito que lhe subiu à garganta, diante daquele fato tão duro que parecia irreal: Soni estava morto. “Morto...” Não fazia sentido. Ele e ela – ambos eram imortais, logo se esperava que vivessem juntos ainda por anos a fio. Ou teriam vivido. Teriam persistido lado a lado para sempre, se Cari não houvesse proposto essa aventura idiota. E Soni avisara-lhe tanto. “Não mais.” Agora não mais poderia contar com seus avisos, com sua cautela irritante, com alguém que lhe guardasse as costas... “Não importa.” No momento não importava, porque a garota tinha certeza de que liquidara os lobos que se avizinhavam por trás. Sua retaguarda não mais precisava da proteção de quem fosse.
A adrenalina ressurgia em Cari e expulsava emoções inferiores, deixando espaço só para o ódio – ódio puro e fervilhante. Soni sacrificara-se por ela: em retribuição, havia de cuidar para que o corpo do rapaz não virasse banquete. Seu braço doía de repuxar e liberar a corda naquele ritmo frenético, mas não tencionava parar até que restasse nada além dela e de seu luto. “Paz.” Queria recuperar a paz dos tempos idos em que o céu era azul e o vento era fresco. Queria levá-lo de volta, apesar de saber que as coisas não seriam como antes. Eles quase se haviam beijado naquela ocasião sobre a colina, mas então ela fingira não notar. Fora uma boba, e a lembrança despertou-lhe somente mais ódio.
Trincou os dentes em resposta ao músculo que latejava, alheia ao mundo a escurecer, e pôs-se a disparar com mais vontade. Todos os sobreviventes da matilha investiam sem hesitar contra Soni, despreocupados com a roda de animais mortos que o envolvia. Ele servia como a isca perfeita, de modo que Cari mal necessitava mirar, que o movimento dos inimigos era previsível. As flechas antecipavam-se à trajetória deles. Para a garota, como não mais se achava cercada, aquilo não era mais difícil do que o exercício a que Gerion submetia-a quando não passava de aprendiz em arquearia. À época alvejava os troncos e galhos marcados pelo mestre, na ordem estabelecida por ele. A pequena Cari – a menininha cujo braço cansava depois de retesar a corda uma única vez – ficaria orgulhosa de quem se tornara: uma caçadora experiente, que somava um sem número de presas abatidas. Talvez reprovasse a frieza da jovem que hoje portava seu nome, todavia a menininha era inocente, desconhecia a morte. No pretérito ela teria cruzado a Linha da Vida só para desafiar a autoridade dos pais, não para transformar a realidade dos nômades. Soni acompanhara-a porque acreditara nela, em sua capacidade de realizar mudanças.
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Nômades da Desolação
FantasíaCari e Soni são dois jovens que habitam um mundo em vias de desaparecer. São nômades como seus pais, e como os pais de seus pais. Precisam viajar sem trégua, porque atrás deles cresce o terreno dominado pela Desolação, um fenômeno de origens desconh...