Parte 8

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– Essa é a pessoa responsável por salvá-lo – disse Cari. – Nossa anfitriã. Marian.

Soni não escondeu a surpresa. O nome era-lhe familiar também e nada de reconfortante evocava.

– Agrada-me vê-lo desperto, criança – saudou Marian com um tom que não demonstrava agrado nem desagrado.

– Vamos, Soni, diga obrigado – pressionou a menina. – Somos hóspedes na casa de Marian. Estamos seguros aqui. – “Teria a rosa me matado ou apenas me feito mortal, tal como Soni é agora?”, e escrutinou o olhar impenetrável da hospedeira. Teria ela extinguido a imortalidade do amigo intencionalmente – e não por acidente? “Nada revela. Não estamos seguros.”

Soni contornou seu estado atônito para balbuciar um agradecimento que não enganaria o mais ingênuo dos homens.

“Péssimo mentiroso.” Mas Marian não transpareceu perceber a desconfiança que exalava do amigo como a radiância de um vagalume.

– Trouxe-lhe uma refeição quente, rapaz. Coma. Precisa se fortalecer.

Soni pegou a vasilha, checou o conteúdo e tornou o rosto para Cari, como se aguardasse instruções. Sua apatia era idêntica a das pessoas que o Velho Tobi enviava ao exílio na Desolação. Talvez especulasse que a comida continha veneno de alguma espécie, porém a garota achava no mínimo contraditório que Marian houvesse prevenido que ele sangrasse até a morte para, depois, envenená-lo. Além do mais, o aroma era delicioso e punha sua boca a aguar.

– Não espere que o ajude a se alimentar – grunhiu Cari. – Se consegue fazer truques com a lupa, consegue também erguer uma colher. – Como Soni era destro, e como era seu braço esquerdo que estava debilitado, não encontraria dificuldades para executar atividades rotineiras, contanto que exigissem uma só mão.

O amigo provou o caldo, e dessa vez foi sincera a sensação que se lhe gravou no semblante: satisfação. Descobriu-se com fome e meteu-se a comer com vontade, não se importando que o caldo estivesse pelando. Marian anuiu para si numa aprovação discreta, e Cari detectou um vislumbre de sorriso nos lábios dela.

– Vou deixá-los a sós – disse a mulher. – Vocês devem ter muito para conversar. Podem permanecer aqui o quanto quiserem, mas não sei por mais quanto tempo Lucio e eu nos demoraremos neste refúgio. A Caravana deve estar partindo enquanto falamos.

A menina amaldiçoou-a intimamente por lembrar-lhe que acabariam ficando para trás. Não ansiava por compartilhar com Soni esse receio, mas agiria pior se o privasse de desvelar a verdade. Seria trair a confiança dele... “Já a traí tantas vezes que mais uma não fará diferença.” Interrompeu o raciocínio. Observou Marian esgueirar-se porta afora em passos meticulosos. Refletiu melhor. E decidiu não ocultar nada. Pois o amigo tinha o direito de conhecer todos seus erros, para opinar sobre o curso de ação que adotariam. “Para escolher.” Omitir qualquer detalhe seria manipulação, e manipulação era a marca distintiva do Velho Tobi. A garota não se portaria como ele. E, embora jamais admitisse para si, Cari estava ávida por conselhos, por alguém que a admoestasse com frases irritantes como “Eu bem que avisei” ou então com algo mais ríspido como “Você está errada. Que ideia estúpida!”. Não queria guardar consigo toda essa responsabilidade, mas tampouco confessaria sentir-se tão vulnerável, tão dependente de outra pessoa.

– Ei... – Soni começou. Cari reparou que ele descansava a colher. Retribuiu-lhe a expressão séria. – Antes, minutos atrás, você sugeriu que eu produzisse uma chama com o sol e a lupa. – Meneou a cabeça rumo à janela: – O sol não brilha na Desolação e, contudo, lá fora brilha. Estamos dentro ou fora dela?

– Nem dentro nem fora.

– Estamos numa casa sem rodas, não é? – não disfarçou a apreensão.

Nômades da DesolaçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora