Parte 12

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– E eu sei disso porque fui eu quem o criei – disse Gerion.

Soni ouvia nada além do crepitar das chamas e da própria respiração. Aguardava uma reação explosiva ou indignada proveniente de Cari, a qualquer momento. Com certeza ela não ficaria quieta ante aquela revelação. De sua parte, Soni não tencionava mostrar-se surpreso. Não daria a Gerion o gostinho de posar de eloquente. Se o caçador pretendia aguçar a curiosidade deles com aquela introdução barata, deliberadamente forjada para torná-lo alguém interessante, não alcançaria seu intento.

Mas foi Cari quem surpreendeu Soni, ao preferir manifestar-se com sensatez em vez de com estardalhaço:

– Criou o vale, mestre? Do mesmo jeito que Marian criou este refúgio? Por meio de sacrifícios, quero dizer?

E foi Gerion quem frustrou a expectativa de Soni, ao não transparecer um mínimo de frustração na voz. Se o rapaz ao menos pudesse conferir-lhe o rosto, nem que por um segundo, só para confirmar se ele não ficara incomodado com o aparente desinteresse de seus ouvintes... Mas não: evitaria ao máximo reabrir os olhos. Não o faria por bobagens.

– Sim, foi parecido com o que Marian fez, porque envolveu sacrifícios – respondeu. – Mas também foi parecido com o que Soni fez. Apesar de querer se livrar de Marian naquela hora, embora seu ato tenha sido voluntário, as consequências fugiram a seu controle, e a imortalidade de Marian foi desfeita. Enquanto eu queria... – interrompeu-se e (Soni adivinhou) tomou um gole do chá. – Desculpem-me. Para explicar o que eu queria conseguir com a criação do vale, vocês precisam de conhecimentos prévios. Fui descuidado. Não sou tão bom contador de histórias quanto meu pai foi.

“Será assim tão complexo?”, inquiriu-se Soni. “Pare de tentar agir como um cara legal, seu babaca.”

– Pode tratar desses outros assuntos antes, mestre. Eu e Soni compreendemos. E desejamos saber tudo.

“Fale por você.”

– Muito bem. – Resfolegou. – O que vocês sabem sobre o fluxo da vida?

“Eu vi mais do fluxo da vida num mísero minuto do que você provavelmente verá em toda sua vida, seu presunçoso.”

– Sei o que Marian me contou – falou Cari. – Sei que o fluxo da vida circula pelo mundo inteiro, como um rio sem início e sem fim. Como está em perpétuo movimento, não pode ser manipulado facilmente. Só no exato momento em que a vida é liberada, após a morte de um vivente, é possível torcer e dobrar o fluxo da vida. Por isso a necessidade de sacrifícios.

– Precisamente – Gerion aquiesceu. – Mas essa é somente parte da história. Uma segunda premissa é que, com o tempo, a vida de cada vivente decai. Anos atrás você me narrou o que tinha acontecido com o cão de seu pai, me relatou como ele perdeu o vigor e, afinal, veio a falecer. A vida dele foi decaindo, se perdendo, até se esgotar. Você deve se lembrar também das árvores ressequidas com que nos deparávamos em nossas explorações do ermo, cinzentas e quebradiças em meio a várias saudáveis. A mortalidade está presente nos dois exemplos. Animais e plantas morrem à medida que os anos passam, e é assim que as coisas funcionam.

– Mas o mesmo não ocorre com todos os viventes – contrapôs Cari. – As pessoas são imortais. Se começam a definhar, é porque foram afetadas pelo miasma da Desolação. Por isso são exiladas...

“Errado! Minha mãe estava saudável.” As mãos de Soni, pousadas sobre as pernas dobradas, fecharam-se de reflexo.

– ... ou é o que o Velho Tobi diz – acrescentou a amiga.

– Ou é o que o Velho Tobi diz – concordou Gerion. – Mas, como devem suspeitar, já que se lançaram nessa jornada inconsequente, tudo isso não passa de um bando de asneiras.

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⏰ Última atualização: Nov 14, 2014 ⏰

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