Parte 6

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O rapaz era tão esquelético que desmontaria se houvesse correntes de ar na Desolação. Era tão pálido que parecia doente – e talvez realmente estivesse. Porém mesmo assim conseguia puxar aquela carreta pelo solo traiçoeiro da zona morta. Enfurnados em órbitas profundas – um aspecto que a lâmpada em sua mão realçava a um nível macabro –, seus olhos fixavam-se em Cari como se ela fosse a coisa mais interessante que já contemplara em toda a vida. Era rude encarar alguém tão afrontosa e prolongadamente, mas ele parecia não ligar para o decoro. Na verdade havia um quê de selvagem em seus modos; e a garota adivinhava que não era mera impressão oriunda das roupas largas e surradas que ele vestia nem de seus cabelos escorridos e mal cortados. A Cari o rapaz lembrava um não vivente, uma criatura inventada por adultos para assustar crianças malcriadas. Nas histórias que os pais haviam-lhe contado quando mais nova, a Desolação drenava o espírito dos que ficavam para trás e tornava-os não viventes, seres apáticos, irracionais e sem vontade de viver: era a mentira perfeita para disciplinar a filha aventureira que insistia em vadear perto da Linha da Vida. Agora, no entanto, ela duvidava de que o alerta se baseasse numa historinha fabulosa.

– Apresento-lhe meu filho – remarcou Marian, dessa vez imprimindo algum sentimento na voz.

"Filho?" Cari analisou-o de cima a baixo. Era menor do que ela, o que combinava com seu porte mirrado e sua musculatura chupada. Mas agora deduzia que o tamanho miúdo era uma questão de idade: o rapaz devia ser mais jovem do que ela. Dava-lhe dez ou onze anos. Suas feições, apesar do estado lastimável, eram as de um menino. O olhar dele, tão firme que era como se a despisse mentalmente, não continha um traço de malícia, só curiosidade infantil – eis o que a garota afinal concluiu.

– Batizei-o de Lucio.

E Lucio abriu um farto sorriso num cumprimento, as narinas dilatadas de ansiedade. Talvez mal soubesse falar de tão simplório que era, Cari supôs, mas se expressava com uma vivacidade que ela teria achado esquisita, se a zona morta já não lhe houvesse oferecido um vasto repertório de esquisitices. E, bem, ao anunciá-lo como filho, Marian teria querido dizer que ele era de seu próprio sangue e que saíra de seu ventre – como os bebês da Carroça das Parteiras? Não, não podia ser um não vivente, pois, de acordo com as histórias, só quem era deixado para trás virava um não vivente – e só gente mais velha era deixada para trás. "Alguém que nasceu no escuro. Filho de Marian." Fazia quanto tempo que a mulher morava na Desolação? "Anos, pelo visto."

– O nome Lucio pertence a uma época que se perdeu, uma época em que os nomes tinham significado – explicou a moça. – Lucio significa luz. É o que ele é para mim aqui.

Na explanação, Cari rastreou o que lhe soou como orgulho. Marian devia amar o filho como qualquer outra mãe, e percebê-lo fez dissolver-se a couraça de desconfiança que a garota construíra para si. Retribuiu a Lucio o sorriso amigável, e o rapaz alargou o dele em resposta, as íris esverdeadas cintilando em face da novidade que era Cari.

– É um bom menino – a mulher anuiu para si. – Foi ele quem notou a movimentação dos lobos. Nós dois observamos de longe você e seu amigo os enfrentarem, e admito que pensei em ir embora quando a situação me pareceu sob controle.

Lucio balançou a cabeça de maneira espalhafatosa, e na prática todo seu corpo e a lâmpada que segurava acompanharam o movimento. A luz oscilou brevemente. Então o rapaz franziu o cenho e projetou os dentes numa cara feroz, os dedos curvando-se como garras, numa imitação de lobo em pose de ataque.

– Sim, foi o que se passou, querido – acatou Marian. – Lucio me impediu de abandoná-los, crianças. Porque logo a fera pulou sobre seu amigo... – e indicou Soni com um gesto – e resolvi intervir. Lucio foi pegar a carreta em nossa cabana enquanto eu me encarregava de espantar os animais restantes.

Nômades da DesolaçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora