Parte 11

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Soni recordava-se vagamente de ter permanecido naquela posição por um tempo incalculável. Minutos? Horas? Não sabia. Não ligava. O tempo perdera sua razão de ser, pois afinal o rapaz fora capaz de abreviá-lo para Marian: colocara um brusco ponto final em sua eternidade. A certa altura recomeçara a chover torrencialmente, mas apenas depois ele percebera, ao reentrar na cabana que a lareira aquecia, meio cambaleando, meio carregado nos ombros de Cari, de Gerion – não tinha certeza de quem. O contraste entre o calor aconchegante do aposento e suas roupas encharcadas acalmava-o, e ele parou de tremer e sentou-se encolhido contra a parede. Só então notou que seus dedos frios agarravam as bordas de uma capa que lhe protegia os ombros. Não a estava portando quando ele e a amiga haviam-se preparado para sair: alguém devia tê-la jogado sobre ele quando se achava prostrado e curvado em meio à tormenta. Inspirou fundo. Sacudiu a cabeça de leve. Alguém como ele não merecia tanto conforto e tanto cuidado. Com o olho esquerdo, espiou a escuridão além da janela, embaçada pela cortina pluvial e ofuscada ocasionalmente pelo branco elétrico dos raios. Não queria voltar lá para fora, ainda que talvez devesse fazê-lo. A tempestade era o destino perfeito para a pior pessoa do mundo. “Eu.” Manteve o olho direito fechado; abri-lo trazia visões insanas de tão assustadoras.

“Assassino.” A palavra vadeou em seus pensamentos com a lentidão de um sinal de fumaça. Provocava a si mesmo. Em contrapartida, cogitava que julgar-se um assassino soava gentil demais. O que fizera fora pior do que assassinato. Não atuara feito emissário da morte. Não matara Marian. “O que fiz...” Desconhecia o nome do ato; não estava certo se existia nome para o que fizera. Todavia, embora não soubesse como designar a perversão que cometera, lembrava-se nitidamente da sensação que o invadira então. O vazio que- sobrara? Não, sobrara não era a palavra correta. Nem vazio. Mas ambas teriam de servir. Soni precisava buscar sentido no vocabulário que lhe era familiar. O vazio que sobrara em Marian após toda a vida esvair-se fizera dela uma boneca oca, menos do que um fantoche. E ele...

Cari irrompeu na sala, vinda do quarto. Encostou a porta com delicadeza – o que não era necessário, que o rugido do temporal engolia qualquer som menor. Soni mirava os próprios sapatos enquanto a cena desenrolava-se no canto de sua vista. Gerion – adivinhava que era Gerion, pelo tamanho da figura – aproximou-se de Cari. Estava molhado até os ossos, empoçava o assoalho. E o rapaz via e não via, o olho esquerdo aberto, o direito fechado. Talvez supusessem que ele cochilava.

– Como está o menino? – perguntou Gerion.

– Dormindo – Cari respondeu. Meneou a cabeça. – Ele não parecia chocado nem triste. Não chorou, não gritou, não acusou ninguém. Só ficou mais mudo que o habitual.

– O rapaz é... diferente – ponderou o caçador. – Se vive na Desolação desde que nasceu, é possível que suas emoções não tenham amadurecido tal como as nossas.

– Discordo. – A amiga cruzou os braços, as mãos alisando os cotovelos, como se tentasse aquecer-se. – Ele e Marian, os dois eram bem próximos.

Sobretudo, Lucio era vivaz e amigável e alegre, remoeu Soni. Sim, falava pouco, mas isso não devia causar assombro: muitas crianças são assim. O rapaz reconhecia que, em retrospecto, quando mais novo se comportara da mesma maneira. E o filho de Marian gostava de queimar coisas com a lupa, exatamente como o pequeno Soni. “Só depois me tornei um chato supercauteloso”, pensou. – Ah, e matei a mãe dele – murmurou com um misto de nojo e de raiva, mas ninguém ouviu.

– Talvez o silêncio seja a forma que ele encontrou para lidar com essa situação – sugeriu Gerion. – Não estava preparado.

– Ninguém está – contestou Cari. – Ninguém nunca está. É uma experiência singular e, mesmo que se repita, continua sendo singular. Nesse campo, as lições do passado são tão inúteis quanto as tradições do Velho Tobi. Desconfio que não somos capazes de aprender a enfrentar a morte de um ente querido. Fosse eu – cerrou o punho direito –, teria berrado desgraçadamente, para logo após furar os olhos do responsável. – E repensou: – Não. Teria agido na ordem inversa: furar os olhos vem primeiro.

Nômades da DesolaçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora