Parte 7

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“Desolação.” Agora a Desolação estava dentro dela. Esse pensamento faiscou na mente de Cari para depois boiar à deriva, como se não passasse de uma conclusão insignificante. Para a menina apática, nada mais importava. Não lembrava se suas esperanças haviam acabado antes ou após o pesadelo. Na verdade, nem isso importava. Só lhe restava esperar, mas não tinha ideia do que esperar. Esparramada junto à borda da cama em posição nem um pouco confortável, a garota fitava a mecha de cabelo que lhe encobria a visão, porque nada de mais interessante existia no mundo e nada era digno de mais atenção no momento.

Cari nunca fora dada a pesadelos. Ou tinha um sono imperturbável, ou simplesmente não se recordava de qualquer sonho ao acordar. Nessa manhã, porém, as imagens da madrugada anterior ainda infestavam sua cabeça, insistentes que nem moscas. Velara Soni por horas a fio, ao luar que as nuvens tapavam de vez em quando. Marian trouxera-lhe guisado de coelho, e a comida quente deixara-a sonolenta. Ainda assim se recusara a ceder ao cansaço em detrimento do amigo. No fim se permitira cochilar por no máximo três horas, e o pesadelo viera – e durara pelo que lhe parecera meio dia.

Estavam ela e Soni correndo à exaustão, correndo com os pés a arder, o sangue a borbulhar e o coração como se para explodir. O cenário passava veloz e disforme à lateral de sua vista, enquanto Cari concentrava-se nas luzes à frente. Eram as luzes da Caravana, desfocadas mas acolhedoras. E ela avançava quase em transe, alheia ao ar escasso e ao terreno acidentado, puxando o amigo pelo pulso, ignorando seus resmungos de que estava cansado e dolorido. Não pararia por nada. Prometera que retornariam e cumpriria a promessa. Entretanto, por mais que movesse as pernas, por maior que fosse a distância percorrida, não conseguia aproximar-se. As carroças afastavam-se mais e mais. Zombavam de seu empenho. Especulara se era o amigo quem a atrasava, e mal tivera tempo de reprovar-se por esse pensamento absurdo quando Soni tropeçara, e ela soltara-lhe o braço. Ao virar-se para ajudá-lo, já se encontrava longe, longe demais para sequer tocar-lhe os dedos, e ele estendera a mão em sua direção e gritara seu nome, e ela fizera o mesmo, mas o abismo entre os dois continuara a crescer. E antes de as trevas engolirem-no, Cari ouvira-lhe a voz, um eco fantasmático. “Eu avisei que falharíamos”, dizia.

A menina marchara no escuro por horas intermináveis. No sonho, seu âmago nutria somente o desejo de rever a Caravana. Soni ficara para trás, e ela esquecera-o quase que totalmente. Uma minúscula parte de si, vagamente consciente de que tudo ali estava errado, vagamente consciente de que sonhava, teimava em arrepender-se de ter abandonado o amigo – mas não era essa parte de si que mexia seu corpo. E quando a escuridão já começava a dar-lhe ânsia de gritar, ela captara luz adiante. Luz e música. Lira e flauta produziam uma melodia simples, ótima para marcar o ritmo numa viagem, e a voz doce de Holi aquecia a noite. Reconhecia a canção. Por estradas inexistentes era o título.

Cari avizinhara-se apressada do círculo dourado, a respiração ofegante. Sua gente divertia-se, e o que ela mais queria era participar da festa. Fogueiras crepitavam entre carroças e tendas, a carne girava em espetos sobre o fogo, e as pessoas rodavam dançantes no entorno. Espiando por detrás de um tronco, a garota identificara rostos familiares. Fariqui, Trevi e outras sentinelas prevaricavam, bebendo enquanto admiravam as moças que rodopiavam, e de vez em quando gargalhando de um comentário sujo. A bela Moari enfeitiçava a todos com seu baile sinuoso, os pés descalços pisando a grama com a leveza de uma filha do vento, os cabelos e as fitas do vestido espiralando em volta de si. As crianças brincavam de faz de conta ou produziam desenhos de sombra com suas mãos e a luz que irradiava das fogueiras. Até Marti, sempre tão quieto, não estava parado entretido com um livro: pelo visto, Alani arrastara-o para dançar consigo. Com seu jeito efusivo e radiante – que Cari tachava de “irritantemente entusiasmado” e que, segundo Soni, era como se ela emitisse uma energia própria, “que nem uma estrela”, palavras a que Cari torcia o nariz –, Alani encorajava Marti a dar passos desajeitados e levava-o a corar a cada risinho adorável que irrompia dela, quando ele repetidamente atrapalhava-se com as pernas da menina roçando nas suas. O movimento animava todos os detalhes da cena, porque o movimento era vida, e ali a vida pulsava na alegria dos viventes. Não era como na zona morta, escura e estéril.

Nômades da DesolaçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora