Parte 10

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De noite Cari e Soni arrumaram as mochilas, depois de Lucio adormecer deitado sobre uma esteira junto à lareira, na sala. A tempestade caíra numa breve pancada à tarde, empoçando o terreno ao redor da casa. O ruído dos pingos a martelar o telhado lembrara à garota a Caravana em movimento, com as engrenagens rangendo e os raros animais de tração pisoteando o solo. As nuvens não se haviam dissipado ainda. Quando ela e o amigo anunciaram que estavam de saída, Marian levantou-se da cadeira onde cerzia uma peça de roupa e gesticulou para que fizessem silêncio e a acompanhassem à soleira, para não acordar Lucio.

– Estão de partida. – Não era uma pergunta.

– Sim – confirmou a menina. – Agradeço tudo que fez por mim.

Agradecemos tudo que fez por nós – corrigiu Soni.

Cari revirou os olhos. “Agora que vamos embora ele inventa de ser cordial.”

– Também tenho de agradecer-lhes. Por Lucio. Com vocês aqui, crianças, ele ficou menos solitário.

– Foi um prazer – disse a menina.

– Foi divertido – disse o amigo.

– Temo que ele não vá aceitar bem nossa despedida, mesmo que ela não seja definitiva. – Cari não sabia se era verdade o que falava. Talvez algum dia no futuro voltasse a ver Marian e seu filho, caso eles alcançassem os clãs e caso ela e Soni regressassem à Caravana. Mas talvez não. “Talvez seja um adeus. Desculpe-nos, Lucio.”

– Cuidarei disso – garantiu a mulher. – Ele compreenderá.

A garota assentiu e pediu o que havia de pedir:

– Há um último favor de que precisamos...

– ... se não for abusivo nem incômodo – Soni interveio.

“Bem lembrado, senhor Gentileza”, e Cari deitou-lhe um olhar reprovador, aborrecida com a interrupção, e revelou o que desejava:

– Provisões.

– Muito bem. Disponho de água e comida para lhes fornecer – consentiu Marian. – Vocês têm ideia de quanto tempo durará a viagem até a Caravana?

– Bem, na verdade... – balbuciou o amigo.

– Na verdade, não seguiremos direto para fora da Desolação. Antes pretendemos investigar o vale que não perece. Foi para isso que viemos.

A mulher pronunciou um “O quê?” quase inaudível. Em sua testa brotaram rugas que Cari jamais percebera. Os olhos sempre inexpressivos brilharam de perplexidade.

– Falei-lhe que o vale era amaldiçoado, criança – e o desgosto provocou um leve tremor em seus lábios.

– Eu sei. Mas iremos de qualquer jeito. Queremos verificar se...

Não devem – cortou-a com rispidez. – Não há nada para verificar. O vale traz a morte a quem se aproxima dele.

– Vamos arriscar – contrapôs a menina.

– Sim. Além disso, já tomamos nossa resolução – ressaltou Soni num tom apaziguador. – Agrademos sua preocupação, senhora, mas não vai nos dissuadir.

– Não importa. Não permito que joguem suas vidas fora sem motivo. – A mulher não gritava, decerto para não perturbar o sono de Lucio, mas a voz carregava uma autoridade que enfurecia Cari. “Quem ela pensa que é para nos dar ordens?” – Proíbo-os.

Oh, bem, eis aí uma escolha infeliz de palavras. Marian cometera um erro grave ao usar o verbo proibir. “Não é minha mãe. Não pode me proibir de nada.” Porém até os pais da garota nunca tinham sucesso em proibi-la de fazer o que fosse. Na concepção de Cari, uma proibição pedia para ser desafiada se se mostrasse insensata, e a menina sempre arranjava argumentos para contestar a sensatez de toda proibição. Por isso ela deu as costas à mulher e retirou-se pisando firme.

Nômades da DesolaçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora