Parte 9

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Passaram-se três dias.

Nesse ínterim Marian alimentou a todos com seu farto estoque de caça, e eis que Cari e Soni reencontraram a disposição que os racionamentos de comida, necessários na escassez da Desolação, haviam sugado deles. O humor da garota melhorou visivelmente com o estômago satisfeito, sem mencionar que era animador ver o amigo com a energia renovada. Embora Soni chiasse e reclamasse um bocado como sempre, era inegável que se esforçava para recobrar a força dos músculos. Por uma razão que, se a questionassem a respeito, a menina atribuiria à ausência de opções, ela até gostava dos resmungos dele, prensada que estava entre o fascínio quieto de Lucio e os discursos comumente monossilábicos de Marian. Com efeito, mais do que qualquer outra pessoa, era Soni quem enchia de som aquela casa que se tornara silente após o desaparecimento dos pássaros – ou reféns de tiros certeiros do estilingue de Lucio, à cata de mais carne para armazenar, ou afugentados por tiros não tão certeiros assim.

A seu tempo o amigo reabituou-se a andar por si só, a princípio inseguro e cambaleante, apesar das palavras estimulantes de Cari e do ombro que ela oferecia para ampará-lo. Cansava-se com uma frequência que a impacientava, mas ela aproveitava essas pausas constantes para relaxar investigando a clareira. Na breve exploração que empreendera já em seu primeiro dia ali, tinha certeza de que nada fugira de sua vista. Depois, todavia, num exame mais detido percebera que sua mente entulhada de inquietações não processara um monte de detalhes.

Os insetos que rastejavam entre as raízes de um toco de árvore aos fundos da casa não eram simples cupins, como de início pensara, e sim larvas de vagalumes. Segundo Lucio, ele e a mãe somente haviam avistado a cabana em meio à zona morta graças à luz piscante do ninho de vagalumes. Era fraca, mas no escuro da noite qualquer luz destacava-se de longe. Sobretudo, era impressionante que aqueles insetos tão miúdos e frágeis não houvessem alterado seu modo de vida com a chegada da Desolação. O simples fato de que houvessem acasalado e botado ovos indicava que, como ditavam seus instintos, pretendiam perpetuar a espécie. Talvez o miasma não afetasse os hábitos de todas as criaturas. “Ou talvez algumas criaturas sejam talhadas para viver nas sombras.”

Daí passara ao mistério correlato: a lâmpada de vagalumes. O material utilizado na confecção era realmente papel – ou, mais exatamente, pergaminho. Pelo que a menina conhecia, o único clã que preservara a técnica de fabricar pergaminho a partir da pele de animais era o Clã de Taurok, no sul. Para Marian obter as lâmpadas, ou teria praticado escambo com a gente de Taurok, ou – algo que Cari receava – um segundo massacre teria sido perpetrado. Quando interrogada pela garota, a mulher garantira que conseguira os objetos antes de deixar seu clã, ou do que sobrara de seu clã, e mediante transação. O Clã de Marian era especializado em ervas e medicamentos, assim como o Clã de Eol era especializado em lã e o Clã de Tobi, em informações e, ultimamente, artigos agrícolas. Logo, a resposta da moça não era implausível, porém a desconfiança não abandonava Cari.

E houvera mais dois aspectos perturbadores. O primeiro: os crânios – sempre eles. Ao analisar um deles de perto, a ponto de cutucá-lo três vezes com o indicador, contemplá-lo balançar debilmente para trás e para frente após o toque e dirigir-lhe um sorriso de cumplicidade, a garota confirmara que sua superfície revestia-se de queimaduras e então – só então – estremecera. Até agora não arranjara fibra para comandar-se a refletir sobre o que lhes teria ocorrido: tinha um ou dois rascunhos de hipóteses, mas quando se dispunha a elaborá-los emperrava numa recorrente exclamação mental – “Cruel”. Repetira aquela palavra para si já uma dúzia de vezes, porém não conseguia ultrapassá-la: era como uma barreira que bloqueava seu raciocínio.

E o último quebra-cabeça ela notara naquela manhã do terceiro dia de sua estada ali: ao lado do canteiro de rosas de onde Lucio colhia seus presentes havia um montículo de terra fofa. Cari pressentira-o ao andar sobre ele e não tivera dúvida alguma do que era. O Velho Tobi difundia entre as pessoas o costume de enterrar os ossos da carne que comessem. Embora tão imperecíveis quanto os deuses, os ossos representavam o fim da vida, a cessação do movimento, pelo que deviam ir para debaixo da terra sempre imóvel – onde deviam permanecer. Exceto se fossem instrumentos de magia e ritos cerimoniais, ossos a céu aberto eram mau agouro. Violava a natureza conspurcar a superfície, ambiente dos vivos, com o esqueleto dos mortos: não era sábio permitir que os dois planos se misturassem.

Nômades da DesolaçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora