Parte 2

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O estômago roncou de novo, mas dessa vez Soni obrigou-o a aquietar-se. Fome: era natural senti-la perto do desjejum, embora naquele breu imutável não se pudesse ter certeza das horas. O rapaz nem se incomodou em conferir a posição do sol acima da teia de galhos desfolhados e enegrecidos, porque já sabia o que esperar. Ele e Cari já somavam dez dias na Desolação, mais do que o suficiente para que houvesse aprendido a não contar com uma mísera réstia de luz penetrando o teto fuliginoso do bosque. “O teto que não é bem um teto e que de fuligem não tem nada.” Pois o céu estava limpo, descoberto, como na tarde em que ele e Cari haviam conversado sobre a Linha da Vida. A memória parecia tão distante, perdida no tempo. “Nós também.” Mas ao contrário do azul de doer os olhos daquela ocasião, nas alturas agora predominava um laranja envenenado ou um bronze velho acinzentado. Da aurora ao pôr do sol o mundo era um ocaso taciturno ali.

E à noite... Não. Ainda faltava meio dia para as trevas, e o bom senso ditava que não se devia pensar nelas prematuramente. “À noite...” Tarde demais: a lembrança maldita chegava-lhe à mente sem permissão. O escuro tão denso que pesava; mais preto do que o negrume que vem com as pestanas fechadas; pior do que um pesadelo, pois equivalia a ficar consciente durante um sono profundo, sem sonhos bons nem maus, fitando a escuridão infinita do nada absoluto. A barriga de Soni gemeu um segundo turno, dessa vez de nervosismo. Por um instante torceu por que Cari não o pegasse naquele estado de mais puro terror. Não desejava posar de faminto ou cansado ou melindroso ou medroso na frente da amiga – por mais que ele próprio se julgasse tudo isso.

Cari andava adiante dele em passos firmes e cuidadosos, sem transparecer o menor sinal de medo ou hesitação. Longe de Soni duvidar da coragem dela, porém desconfiava que sua tranquilidade devia-se sobretudo ao empenho que vinha dedicando àquela missão, e não a uma intrepidez fervilhante. Decerto uma centena de conjecturas pululava-lhe na cabeça, dado seu jeito de avançar quase em transe, como se alheia aos perigos à espreita na zona morta. E Soni despreocupou-se, menos pelo autocontrole que a amiga exalava e mais pelo fato de que tão absorta estava, que não interromperia seu ritmo para checá-lo atrás. Inexistia risco de que o percebesse esbaforido, com as íris suplicando por uma pausa para o almoço e com cada nervo ocupado em domar um berro ensurdecedor. O rapaz não tinha ideia de por que gritaria, mas sabia que queria. Talvez para extravasar alguma frustração, talvez para aliviar a tensão, talvez para conservar a sanidade.

“Talvez por aquilo!” Pois ali o desespero era reação mais sensata do que a calma demente de Cari. Soni engoliu o berro que lhe subiu à garganta. Tinha gosto de vômito. Torceu o nariz ao fedor repulsivo que escapava do amontoado de peles à frente.

– O urso está morto, Soni. Não precisa surtar.

O rapaz indignou-se.

– Eu não ia surtar. – A voz saiu nasalada, porque ele apertava as narinas entre os dedos.

Cari agachou-se junto da carcaça, a face mais séria do que o normal ao examiná-la. O rapaz acercou-se com prudência, vigiando os arredores. A fome esvaía-se na mesma proporção em que o cheiro nauseabundo aumentava. “Pelos ossos, a Desolação conseguiu matar um urso. Um urso gordo, parrudo e assassino!” Se bem que o animal parecesse mais magro do que deveria, agora que Soni conferia-o de perto. Ele jazia sobre as quatro patas, como se descansasse. Mas o corpo nem remotamente sinalizava boa saúde, que sua pelagem semelhava folgada demais, cinzenta demais. “Decrépita demais”, arrepiou-se.

– Vamos logo, Cari, antes que algum animal apareça em busca de comida. – Lobos: eis o que receava.

A amiga rejeitou a pressa com um aceno tranquilo da mão.

– Este cheiro vai é afastá-los, em vez de atraí-los. E observe: há moscas em meio aos pelos – e Soni viu-as; todas mortas, feito passas num bolo. – Já faz tempo que desfaleceu. Nenhum animal ajuizado tocaria esta carne.

Nômades da DesolaçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora