#10 - Empty Cups

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Eu não conseguia quebrar os velhos hábitos de imaginar a vida de todos. Não importava mais que eu não tivesse o café como minha inspiração, eu era uma desbravadora de novas estórias em lugares aleatórios e duvidosos.

Continuamente, eu me via andando por ruas desconhecidas e estabelecimentos um tanto suspeitos. Tudo isso para conseguir uma boa inspiração, uma boa estória. Eu me sentia uma jornalista na busca de uma matéria de capa (mesmo que retratar a realidade fielmente nunca tenha sido meu forte).

Naquele instante eu estava num estranho bar, numa rua estranha, num bairro estranho nas entranhas de Florença. Não era um lugar peculiar ou interessante, o maior elogio que conseguiria dar a aquele lugar não ultrapassaria o medíocre.

Contudo, admito que as pessoas que ali estavam não receberiam essa mesma discrição. Eu via figuras especiais que tinham muito mais a dizer do que eu tinha páginas para anotar.

Cada figura com um copo vazio diferente guarda um segredo que eu tentava desvendar.

Aquelas últimas gotas de vinho que repousavam na taça pertenciam a uma mulher. Os óculos de laterais pontiagudas pareciam seguir o formato de seus cílios. Ela tinha um coque bem feito, com alguns fios soltos de quem passara o dia todo com o cabelo preso. As marcas de expressão transpareciam seu cansaço.

Em suas mãos as unhas descascadas mostravam a falta de tempo que tinha para si mesma. Seu cardigã tinha pelos, eu poderia somente imaginá-la como a tia louca dos gatos. Contudo, não podia simplificá-la a esse mero esteriótipo, ela era mais que isso. O livro de música em sua mão entregava sua peculiaridade. Seu estudo musical de heavy metal a transcendia de uma mera mulher de 40 e poucos anos que nunca se casara e tinha gatos para suprir seu vazio sentimental. Talvez ela só estivesse lendo o livro por alguma razão que não o mero prazer, mas preferia acreditar que durante a noite, depois de ter tomado sua segunda taça de Cabernet, iria tirar aquela saia xadrez abaixo do joelho e colocar uma jaqueta de couro e spikes. Balançaria os cabelos a noite toda ao som de uma música impossível de diferenciar letra e gritos. Talvez isso a trouxesse mais uma vez ao mero esteriótipo de quem quebra com estereótipo, mas acho que é a sina de todos viver nesse eterno looper de nunca ser verdadeiramente original.

Do outro lado do bar eu via a mãe. Com o cabelo num rabo de cavalo e roupas de yoga. Eu via nela a dúvida enquanto girava o dedo no gordo copo de conhaque e encarava o celular como se esperasse alguma noticia. Seu anel estava na mão direita, um pequeno diamante que abria enumera possibilidades. Seria ela mais um resultado do seguir em frente após o divórcio? Ou talvez uma mãe "moderna" que deixará o casamento para depois dos filhos, ou talvez pelo contrário, os filhos fizeram ela deixar o casamento para depois. Estava claro que ela tinha filhos, não era pela maquiagem que cobria suas leves olheiras, mas pela tinta na lateral do tênis, do chaveiro feito de macarrão pendurado na bolsa de grife (o que a tornava uma boa mãe, porque muitas não aceitariam essa combinação. Só uma mãe sabe que macarrão nunca sai de moda).

Me deixei encará-la por tanto tempo que ela deve ter sentido meu olhar. Ela me viu e deu um sorriso maternal cansado. Ela parecia muito o tipo que tentava fazer tudo. Deixar todos felizes esquecendo que precisava satisfazer a si mesma. Talvez, esse bar fosse sua fuga da realidade, um tempo que tinha para esquecer suas responsabilidades e saborear o conhaque que não bebia desde a última festa de natal na casa de seu avô.

Sentado em uma das mesas, eu via um senhor. Com três copinho de tequila viradas para baixo ele exalava uma certa juventude. Claramente, ele estava entre seus 60/70 anos, mas todo o conjunto: chapéu, botas, jeans skinny, pulseiras de couro... tudo o trazia de volta aos seus 40 talvez. Ele não parecia deslocado naquelas roupas, não era um conjunto deprimente. O estilo roqueiro que não quer aceitar que os anos de glória se foram. As roupas lhe eram tão naturais quanto a barba esbranquiçada feita de forma inusitada. Ele era quase um personagem de desenho com seu bigode com pontas espiraladas.

Por fim eu via a mulher sentada próxima ao computador que fazia a escolha das músicas. O copo d'água estava vazio parecendo que nunca fora enchido. Ela balançava a cabeça lentamente ao som de Sinatra. Ela estava perdida nos próprios pensamentos enquanto brincava com os anéis de cebola a sua frente. O exagero de ketchup era denunciado pela mancha vermelha em sua manga.

Quis poder entrar na mente dela e descobrir seus devaneios. Entender porque tinha aquele sorriso de canto de boca enquanto olhava para o além. Meu desejo era sentar a sua frente e descobrir sua vida por completo, preencher seu copo vazio com todas as memórias que ela pudesse compartilhar, mas assim... assim ela passaria a ser uma única pessoa. O interessante daqueles copos vazios eram todas as possibilidades que eu podia preencher, todas as possibilidades que cada uma daquelas pessoas podia ter.

Isso era o que eu amava em todas aqueles estranhos que via pela rua. Eles tinham potencial de ser qualquer pessoa, suas vidas não estavam delimitadas. Eu só poder ter certeza de que sabiam disso.

Empty BottlesOnde histórias criam vida. Descubra agora