#05 - O Último

1.3K 213 12
                                    

Quando a perguntam o que ela é, a resposta é sempre um tanto elaborada: "sou uma artista, uma cantora ainda não descoberta. Sou uma pianista subestimada. Sou uma compositora com os dias contados para o sucesso."

Quando me perguntam o que ela faz, não gasto muitas palavras: "ela é um caso perdido".

Não digo por mal. Kassandra é incrivelmente talentosa, mas não ultrapassa a linha da mediocridade porque não tem autocontrole, foco ou persistência... O que a separa do estrelato nunca foi a falta de reconhecimento, ninguém subestimava sua habilidade. Seus professores gabavam-se por terem sido parte da educação dela. Os likes que recebia no YouTube eram palmas silenciosas parabenizando seu ótimo trabalho. Os e-mails eram trilhas de  oportunidades que ela sempre hesitava perseguir.

Reconhecimento nunca fora o problema, mesmo que ela gostasse de dizer. Dava uma certa dramaticidade, o ar do artista sofrido que compunha sobre a dureza da vida.

Kassandra era essa pessoa, mas somente para sua mente enebriada de álcool, drogas e remédios.

Eu lembro da primeira vez em que ela dissera que iria parar. Estávamos de volta em casa durante as férias da faculdade. Meu pai dera a ela um piano novo que custava o preço de um carro popular. Estava orgulhos por ter mais uma artista para tocar nos estupidos recitais da família (minhas habilidades com o triângulo nunca foram muito impressionate).

Ela era a gêmea que herdou o talento, mas que parecia não saber externamente como usá-lo.

Naquela noite saímos para uma festa, ela tomou alguns drinks, misturou algumas drogas... ela estava fora de controle. As alucinações bateram mal, o medo daquela badtrip fez com que ela prometesse a todos os possíveis deuses que ficaria limpa. No dia seguinte, ela mudou de ideia, e estava mais uma vez naquele caminho de altos e baixos sem fim.

Kass tinha sorte, somos parte de uma família cheia de recursos (um dos eufemismo de nossos pais meus pais para não parecerem pretensiosos e dizerem ricos – o que acaba tendo o efeito exatamente contrário).

Por claramente ser a preferia (não que eu estivesse preferido nessa situação), o presente de formatura de Kass fora um apartamento que seu talento nunca conseguiria pagar, nem mesmo com a ajuda de seus shows esporádicos e suas vizualizações no YouTube. Ter alguém que pagasse suas contas era o que a diferenciava de um artista realmente sofrido do Brooklyn, de seu falso sofrimento no Upper West Side. Algumas vezes me pergunto se não seria esse o problema, se todos os mimos não a deixaram nesse estado de deriva, mas também não sabia dizer que se não seriam esses mimos que a impediam de afundar completamente.

O que seria dela sem o dinheiro para remobiliar o apartamento constantemente depois das fervorosas discussões com o namorado bailarino? Teriam eles que quebrar mobília barata ao invés de porcelana chinesa? Onde Pietro guardaria suas sapatilhas surradas que não numa cobertura que tinha o closet do tamanho de uma segunda casa? (Ele não era um interesseiro, mas quem diz não a tais regalias?)

Eram um casal autodestrutivo que se recusava a perceber como eram tóxicos um para o outro.

Pietro tinha seu lugar numa companhia de dança qualquer e estava fadado a não passar da mediocridade de fazer parte do bando de bailarinos. Kass sabia disso, mas nunca diria a ele, nem mesmo quando vasos de flores estivessem estourando contra paredes. Era o único insulto que nunca seria usado numa discussão.

Os dois partilhavam os mesmos maus hábitos, Pietro partilhava de não pagar por eles. O cheiro de cigarro era a essência da casa (ao menos escondia o cheiro das outras drogas).

Kassandra sabia que nada daquilo a ajudava, sabia no fundo que era uma viciada, mas se contentava com isso. Se contentava em mascarar os sentimento e matá-los com um pouco de coca de cada vez.

Para ela era suficiente escrever uma música por ano, ou praticar o piano quando sobrasse tempo em sua agitava vida social. Cantaria quando não estivesse muito ocupada gastando sua mesada em jaquetas de couro que não precisava para fingir ser um alternativo que não era. Kass era só mais um clichê, uma ironia que brincava com os brincos de diamante em suas orelhas.

Kass inúmeras vezes afirmara, olhando em meus olhos, que aquele era seu último copo, que era sua última linha, que era seu último cigarro. Eu não podia fazer mais do que esperar que ela dissesse a verdade em uma dessas vezes.

A grande questão era que Kass tinha um trunfo na mão: Kassandra funcionava. Era isso que a separava da reabilitação forçada, ela era uma viciada altamente funcional. Mesmo com seus neurônio continuamente em destruição, ela ainda conseguia ia aos jantares de família e sorrir, enrolar sobre a economia, trazer alguns fatos histórico, e algumas vezes até criar uma música ou outra para mostrar que sua criatividade não se fora por completo.

Vendo ela em meu sofá, cansada das longas horas de viajem, Kass quase parece normal. Eu quase consigo ter alguma esperança de que algo poderia mudar. Eu a amo, ela é minha irmã, mas aprendi cedo que não posso mudá-la. Nada muda em Kassandra por intervenção, precisa vir de dentro dela. Do contrário, tudo continua o mesmo.

Algumas pessoas simplesmente não mudam, tudo que posso fazer por ela é estar ao seu lado segurando a caixa de band-aids e esperar que isso sempre seja suficiente.

Empty BottlesOnde histórias criam vida. Descubra agora