#21 - Transito

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Jai

Lembro de quando eu era pequeno e meus pais foram, uma única vez, me buscar na escola. Foi uma longa e demorada viagem, demoramos horas para chegar em casa por causa do interminavel trânsito.

Tenho ainda em minha mente as reclamações e respirações fortes de irritação, as palavras ríspidas que meus pais trocavam como se a culpa fosse de algum deles.

Por outro lado, eu não estava muito incomodado. Estava esparramado com o banco de trás que era todo meu. Aproveitei o tempo e fiz meu dever de casa (eu era muito aplicada na segunda série) e depois passei a ler meu livro. Não era um livro muito grande, mas ainda assim, fiquei orgulhos de ter terminado antes de chegarmos em casa.

Nesse instante, estou parado em meio a um oceano de carros. Para qualquer lado da rua que olho, só enxergo as luzes ofuscantes de carros que não se movem. Minha música toca um pouco alta e eu danço comigo mesmo tentando não parecer maluco. O trânsito é sempre um tanto inconveniente, mas nada que me tire do sério.

Olho para o lado, vejo uma mulher batia no volante reclamando com os carros imoveis. Ela me olha como se tivesse sentido que eu a observava e, quando nossos olhares se encontram, ela fica vermelha envergonhada. Sorrio para ela, mas ela não sorri de volta. Vejo pelo menos, sua irritação diminuir. Ela não é muito jovem, aparenta uns quarenta anos. Está arrumada, talvez saindo do trabalho, assim como eu. Minha mão ainda dói de fazer tantos detalhes pra aquela animação.

Estalo os dedos e abaixo um pouco a música. Aperto meu pescoço e me  espreguiço. Observo o carro do outro lado. Era um casal, a mulher estava no volante e o homem dormia encostado na janela. Ele parecia exausto, as olheiras eram tão evidentes quanto a baba que caia de sua boca sobre seu ombro. A posição em que estava provavelmte o daria uma torcicolo.

Pelo retrovisor vejo uma mulher com uma caneta em mãos, ela aproveitava o tempo parada para preencher algum tipo de documento. Não sei ao certo se ela lembrava que tinha um lápis preso em seu coque ou se sabia que tinha um risco de caneta em sua bochecha. Ela parecia sobrecarregada, mas a ferocidade de seus olhos me dizia que ela não se importava muito com isso.

Bem na minha frente, posso ver uma dupla de irmãos sentados no banco de trás. Um deles mantinha seus olhos foçados em um desenho animado que nunca tinha visto. Sua cabeça cambaleava para os lados como se mal conseguisse continuar vendo o desenho de tanto sono. O irmão menor estava de costas, deslizava um carrinho pelo banco fazendo barulhos que eu não podia escutar. Baixei a música um pouco mais, era silenciosos. Meu carro tinha um bom isolamento acústico, então o trânsito não parecia tao caótico quanto deveria ser. Meu olhos correm pela rua vendo um garoto atravessar entre os carros. Não reparo muito nele, mas meu colega de quarto tem um casaco igual ao dele.

Escuto as buzinas atrás de mim, o sinal abriu. Acelero um pouco e freio novamente. Faço isso tantas vezes que perco a conta. Quando chego em casa estou com os pés cansados desse movimento repetitivo. Me estico no sofá tomando coragem para ir até a geladeira pegar alguma coisa.

Lucas

Atravessei a rua por entre os carros que estavam presos no trânsito. Era o som do caos, uma sinfonia sem harmonia. A chuva fina batendo nos capôs só piorava. As luzes piscavam e ofuscavam. Talvez de longe, bem de longe pudesse ser uma visão bonita, mas ali e naquele instante, tudo era um caos de luz e barulho.

Sinto um calafrio percorrer minha espinha. A temperatura tinha caído bastante desde o início da noite. Sinto respingos de água molhando meu rosto. Puxo meu capuz mais para a frente, mas já não havia mais nada que ele pudesse fazer para me proteger da chuva.

Ando rápido junto aos carros parados. Os motoristas tem olhos irritados, impacientes. Imagino o quanto estão cansados do dia e só querem chegar em suas casas. Eu estava cansado e só queria chegar em casa.

Estava quase feliz por pegar o metrô e não ter que ficar parado brincando de acelerar e freiar. Desço as escadas para dentro da estação escapando a chuva que havia piorado muito repentinamente. Escuto as gotas caírem distantes e o calor da estação me deixando mais confortável.

O frio se torna um calor abafado. Sinto-me uma sardinha quando entro no metrô lotado. Minha respiração fica mais difícil, sinto um excesso de contato humano. Aceleramos e paramos a cada estação com um pequeno baque da parada total. Sentimos um puxão a cada vez que o vagão volta a andar. São 11 estações até que eu chegue em casa, mas enfim eu chego. Me jogo no sofá tirando o sapato e sentindo o alívio. Meus pés estão doloridos de andar e me manter em pé.

– Aqui – Jai diz me entregando uma lata de guaraná e sentando no sofá.

O vejo colocar os pés sobre a mesa de centro exibindo suas ridículas meias da sorte estampadas.

– Vi alguém com um casaco igual ao seu hoje – ele diz aumentando o som da TV.

– Uhn... – digo dando de ombros e dando um gole na bebida.

Empty BottlesOnde histórias criam vida. Descubra agora