#22 - Domingo

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*Opa - avô
*Oma - avó

A memória sempre foi muito clara. Lembro de como as pontas dos meus pés mal tocavam o chão, da forma como eu me debruçava sobre o frio mármore da janela tentando saciar minha curiosidade. Meus olhos confusos seguiam o carro estrada abaixo até que se tornasse um pontinho luminoso na hora mais escura da noite.

Lembro-me de culpar domingo, culpei o dia da semana da maneira mais literal que só uma criança de cinco anos consegue fazer. Domingo era sempre o grande culpado, ao menos era o que Opa costumava dizer, e eu não tinha porque duvidar dele. Foi num domingo que Opa caiu de uma árvore e quebrou o braço, num domingo que sua Mutter morreu num acidente, num domingo foi convocado a guerra, num domingo fugiu da guerra e foi num domingo que Oma morreu.

Não poderia então ser outro dia da semana. Era domingo e éramos só eu e ele na opulenta casa no topo da montanha. Lá de cima tudo era distante, pequeno, irrelevante. Passamos a tarde isolados naquele mundo, assistimos a desenhos e falhamos em montar um quebra-cabeça. Quando meus olhos pesaram, Opa preparou um copo de leite quente e me deu um beijo de boa noite.

Fechei os olhos deixando que os sonhos viessem. Tartarugas com rostos de leopardo ou, talvez, o contrário. A imagem se foi muito rápido. O perfeito silêncio da noite havia sido quebrado pelo som de madeira sendo arrastada. Meus olhos se abrem e fecham de novo, imagino Opa batendo em uma das cadeiras da sala como sempre fazia quando tentava andar no escuro para pegar um copo d'água.

Viro na cama e abraço com força o cobertor. O frio faz eu me encolher. Espero cair de volta num sonho, mas uma sequência de luzes passa por de baixo da porta. Acendo o abajur sentando na cama, minha curiosidade estava desperta. Toco os pés no chão gelado, hesito sair do ambiente quentinho.

O ranger da minha porta se abrindo me faz parar. Uma cabeça mascarada se esgueira para dentro, um par de olhos confusos percorrem o quarto e dizem algo numa voz mecânica. Um barulho soa do quarto ao lado, do quarto de Opa. Me inclino para levantar, mas sou parada por um "shh". Vejo a mão do homem estendida em repressão a meu movimento. Congelo. A porta se fecha e as luzes passam outra vez por de baixo da porta.

Espero o som dos passos se distanciar. Desço da cama andando na ponta dos pés. Meus dedos hesitam girar a maçaneta, tiro a mão com medo. Quem eram eles? Abro a porta tendo meu medo superado pela curiosidade.
Saio devagar. A casa está mergulhara em seu silêncio natural. A porta do quarto de Opa esta escancarada, um lençol se esparrama no meio do corredor. Meus passos são leves e cauteloso, temem caminhar para a sala. O que estava acontecendo? Olho para nosso quebra-cabeça jogado no chão.

Vejo a luz que vem de fora da janela. Lentamente arrasto meus pés até a janela, observo o carro se afastar levando Opa. Liguei a luz com uma séria preocupação em mente "Opa vai querer terminar o quebra cabeça quando voltar". Guardei as peças antes de pegar o telefone e apertar no número gravado da minha mãe.

Os policiais apareceram só uma vez, perguntaram o que aconteceu e foram embora. Minha mãe se calou sobre o assunto, meu pai não respondia minhas perguntas. Nunca disseram o que aconteceu com Opa, a melhor resposta que consegui arrancar deles foi "Opa não vai voltar".

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Coloco a última peça do quebra-cabeça que tinha guardado por tanto tempo no fundo da caixa de brinquedos no sótão.

O símbolo já tinha feito meu coração se apertar, mas quando a última peça de encaixou senti uma lágrima escorrer por meu rosto.

Opa era um senhorzinhos aos meus olhos infantis, mas um monstro aos olhos do mundo. Lembro me do dia em que vi minha mãe chorar ao ler o jornal local, lembro bem porque foi um dia antes do meu aniversário.

Abro o celular buscando a data no site do jornal. Vejo a manchete estampada na capa:

"Nazista é capturado na Argentina e levado a Israel para julgamento".

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