#09 - Bolo

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Eu lembro da primeira vez que perguntei a minha mãe o que ela fazia. Eu deveria fazer um desenho e entregar a minha professora.

– Eu trabalho com bolos de festa - foram as palavras exatas de minha mãe.

Naquele tempo eu não tinha ideia do que era um eufemismo, meu desenho fora minha mãe na cozinha fazendo um bolo. A ironia de tudo era como esse desenho me pareceu natural mesmo nunca tendo visto ela cozinhar alguma coisa.

Desenhei o avental vermelho e o chapéu branco de cozinheiro no melhor estilo desenho infantil deformado. O amontoado de rabiscos era quase entendível se considerado arte abstrata.

Por muito tempo, essa resposta da minha mãe foi suficiente. Em minha imaginação, quando minha mãe saía para trabalhar, ela ia para uma enorme cozinha e fazia bolos de vários andares, coberturas coloridas e recheios deliciosos. Algumas vezes, ela até voltava com uma fatia para mim.

Foi com o passar dos anos que comecei a perceber algumas inconsistências. Primeiro, minha mãe não era uma exímia cozinheira. Nas poucas vezes que ela preparava o jantar ele incluía comida congelada ou sobras requentadas de delivery. Segundo, ela nunca fizera um bolo em casa, o que seria o mínimo ao menos nos meus aniversários. Terceiro, ela sempre ia trabalhar a noite, o que não era absurdo pois festas acontecem a noite, mas ainda assim, me parecia um pouco estranho que absolutamente ninguém fizesse uma festa durante a tarde.

Quando eu completei 12 minha mãe finalmente me sentou no sofá para ter uma conversa séria. Em minha mente repassei tudo de errado que eu poderia ter feito naquela semana, já comecei a planejar pedidos de desculpa e preparei meus ouvidos para a pior bronca de todas.

Porém, nada disso aconteceu, ela foi quem me pediu desculpas, disse que havia mentido para mim. Ela estava nervosa, a ansiedade era visível em seus olhos que não focavam os meus como se houvesse culpa em suas palavras. Depois de algum silêncio torturante, ela finalmente me explicou.

Minha mãe realmente trabalhava com bolos de festa, mas ao invés de fabricá-los, ela era o recheio deles.

Acho que aquela fora a hora certa, eu já era grande o suficiente para entender o que ela queria dizer por "ser o recheio", mas eu ainda não havia sido desvirtuado demais pela sociedade para julgá-la.

Não saberia ao certo qual seria minha reação se ela me contasse nesse instante. Talvez minha visão sobre esse tipo de vida fosse outro se minha mãe não tivesse sido tão honesta comigo. Ela não se envergonhava do que fazia, tinha até um certo orgulho. Ela sempre fora uma mulher bonita, eu podia ver a forma como os homens olhavam para ela. Minha mãe gostava de ser desejada, de ser posta num pedestal mesmo que pelos motivos errados. Porém, o mais importante: ela era independente. Sozinha ela me criou sem que passássemos por privação alguma, pelo contrário, ela sempre me deu a melhor vida que podia muito acima do medíocre. Ela me colocou em boas escolas, pagara por minhas aulas de violão e francês, fez questão que eu participasse de todas as viagens da escola. Nunca deixou faltar comida ou luz, minha vida era talvez melhor do que a de outras crianças com mães convencionais.

Eu podia não sair gritando ou fazendo trabalhos de escola sobre o trabalho da minha mãe, mas nunca me envergonhei de seu trabalho. Eu usava seu eufemismo de "ela trabalha com bolos de festa", o que me gerava problemas quando as pessoas perguntavam sobre a possibilidade de fazer encomendas, mas ainda assim me orgulhava daquela mulher que saia de bolos gigantes.

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