Capítulo 19

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Desde que Anna ficou livre, não consegui mais dormir. Há intermináveis pesadelos e
figuras sombrias se inclinando sobre minha cama. O cheiro de uma fumaça doce e
persistente. Os miados do maldito gato na porta de meu quarto. Algo precisa ser feito.
Não tenho medo do escuro; sempre dormi como uma pedra, e já esgotei minha cota de
presença em lugares sinistros e perigosos. Já vi quase tudo que existe para se temer neste
mundo e, para dizer a verdade, os piores são os que dão medo sob a luz. As coisas que
seus olhos veem claramente e não conseguem esquecer são piores que um amontoado de
figuras escuras que ficam por conta da imaginação. A imaginação tem memória ruim; ela
se esvai e fica borrada. Os olhos lembram por muito mais tempo.
Então, por que estou tão assustado com um sonho? Porque ele parecia real. E está
presente há tempo demais. Abro os olhos e não vejo nada, mas eu sei, eu sei que, se
pusesse a mão embaixo da cama, algum braço em decomposição se projetaria dali e me
arrastaria para o inferno.
Tentei culpar Anna por esses pesadelos, depois tentei não pensar mais nela. Esquecer
como nossa última conversa terminou. Esquecer que ela me encarregou da tarefa de
recuperar meu athame e, depois, matá-la com ele. Solto o ar em uma expiração rápida de
desprezo quando essa ideia me vem. Porque como eu posso fazer isso?
Não farei e pronto. Não vou pensar nisso e vou fazer da procrastinação meu mais
novo passatempo.
Estou cochilando no meio da aula de história. Felizmente, o sr. Banoff não notaria
nem em um milhão de anos, porque eu me sento no fundo da sala e ele está de pé junto à
lousa branca, falando sem parar sobre as Guerras Púnicas. Eu provavelmente me
interessaria se conseguisse permanecer consciente por tempo o bastante para sintonizar
na aula. Mas, para mim, é só blá blá blá, cochilo, dedo morto em meu ouvido, despertar súbito. E recomeça o ciclo. Quando toca o sinal de final do período, levanto a
cabeça num susto e pisco uma última vez, depois levanto me arrastando da carteira e vou
em direção ao armário de Thomas.
Eu me apoio no armário do lado, enquanto Thomas guarda seus livros. Ele está
evitando meu olhar. Alguma coisa o incomoda. Suas roupas estão muito menos
amarfanhadas que de hábito. E parecem mais limpas. E combinam entre si. Ele está
querendo agradar Carmel.
—Isso é gel no seu cabelo? —provoco.
—Como você pode estar tão animado? —ele pergunta. —Não viu as notícias?
—Que notícias? —Decido fingir inocência. Ou ignorância. Ou ambos.
— As notícias — ele grunhe. Sua voz fica mais baixa. — O cara no parque. O
desmembramento. — Thomas olha em volta, mas ninguém está prestando atenção nele, como de hábito.
—Você acha que foi a Anna—digo.
—E você não? —pergunta uma voz perto de meu ouvido.
Eu me viro. Carmel está bem ao lado de meu ombro. Ela se move para ficar ao lado
de Thomas e, pelo jeito como eles me encaram, posso apostar que já discutiram esse
assunto longamente. Eu me sinto atacado, e um pouco magoado. Eles me deixaram de
fora. Estou me sentindo como uma criança ofendida, e isso me irrita mais ainda.
Carmel prossegue:
—Você não pode negar que é uma enorme coincidência.
—Eu não nego. Mas é coincidência. Não foi ela.
—Como você sabe? —eles perguntam ao mesmo tempo. Que bonitinho.
—Oi, Carmel.
A conversa é interrompida de repente, quando Katie se aproxima com um bando de
meninas. Algumas delas eu não conheço, mas duas ou três fazem matérias comigo. Uma
delas, uma morena miúda de cabelos ondulados e sardas, sorri para mim. Todas
ignoram Thomas completamente.
—Oi, Katie — Carmel responde sem entusiasmo. —E aí?
—Você ainda vai ajudar com o Baile de Inverno? Ou vamos ser só a Sarah, a Nat, a
Casey e eu?
— Como assim, ajudar? Eu sou a presidente do comitê. — Carmel encara as
meninas, perplexa.
—Bom...—Katie diz, com o olhar fixo em mim. —Isso foi antes de você ficar tão ocupada.
Penso que Thomas e eu gostaríamos de cair fora daqui. Isso é mais constrangedor do
que conversar sobre Anna. Mas Carmel não se aperta.
—Olha só, Katie, quer dizer que vocês estão tentando dar um golpe?
A garota fica balançada.
—Oquê? Como assim? Eu só estava perguntando.
— Então relaxa. Ainda faltam três meses para o baile. Vamos nos reunir no sábado.
—Ela se volta ligeiramente, em um gesto eficaz de conversa encerrada.
Katie está com um sorriso constrangido. Ela diz mais algumas coisas apressadas e
comenta como é bonito o suéter que Carmel está usando, antes de se afastar com passos hesitantes.
—E, cada uma de vocês, levem duas ideias para a arrecadação de fundos! — Carmel
ordena atrás delas. Depois olha de novo para nós e encolhe os ombros, como se pedisse
desculpas pela interrupção.
—Uau —Thomas murmura. — Meninas são foda.
Carmel aperta os olhos, mas depois sorri.
— Claro que somos. Mas não deixem que isso distraia vocês. — Então olha para
mim. —Conte o que está acontecendo. Como você sabe que não foi a Anna quem matou
aquele homem?
Eu gostaria que Katie tivesse demorado um pouquinho mais conosco.
—Eu sei —respondo. —Estive com ela.
Olhares furtivos são trocados. Eles acham que estou sendo ingênuo. Talvez eu esteja,
porque é de fato uma enorme coincidência. Ainda assim, venho lidando com fantasmas
durante a maior parte da vida. Acho que mereceria o benefício da dúvida.
—Como você pode ter certeza? —Thomas insiste. —E será que podemos correr o
risco? Eu sei que o que aconteceu com a Anna foi terrível, mas ela também fez algumas
coisas terríveis, e talvez você devesse mesmo mandá-la para... sei lá para onde você os
manda. Talvez seja melhor para todos.
Estou impressionado com o fato de Thomas falar dessa maneira, embora eu não
concorde. Mas é o tipo de conversa que o deixa pouco à vontade. Ele começa a mudar o
peso de um pé para o outro e a ajeitar os óculos de armação preta no nariz.
—Não —respondo apenas.
— Cas — Carmel começa. — Você não sabe se ela não vai machucar mais ninguém.
Ela mata pessoas há cinquenta anos. Não foi culpa dela. Mas provavelmente não é tão fácil parar de repente.
Eles fazem parecer que ela é como um lobo que provou sangue de galinha.
—Não —digo de novo.
—Cas.
— Não. Vocês podem me contar suas razões e suas desconfianças. Mas a Anna não
merece estar morta. E, se eu enfiar uma faca na barriga dela... —Quase sufoco só de dizer
isso. —Não sei para onde a estaria mandando.
—Se nós arrumarmos provas...
Agora eu entro na defensiva.
—Fiquem longe dela. Esse assunto é meu.
— Esse assunto é seu? — Carmel revida. — Não era assunto seu quando você
precisou da nossa ajuda. Não foi só você que correu risco naquela noite, naquela casa.
Você não temo direito de nos deixar de lado agora.
— Eu sei — digo e suspiro. Não sei como explicar. Queria que fôssemos mais
próximos, que eles fossem meus amigos há mais tempo, para que soubessem o que estou
tentando dizer sem que eu precisasse falar. Ou que Thomas pudesse ler pensamentos
com mais precisão. Talvez ele possa, porque põe a mão no braço de Carmel e sussurra
que é melhor eles me darem um tempo. Ela olha para Thomas como se ele estivesse
louco, mas se acalma um pouco.
—Você é sempre assim com seus fantasmas? —ele pergunta.
Eu desvio o olhar para o armário atrás dele.
—Assim como?
Seus olhos perscrutadores estão tentando ler meus segredos.
—Não sei —ele diz, depois de um segundo. —Você é sempre tão... protetor?
Finalmente, eu o encaro. Há uma confissão em minha garganta, mesmo no meio de
dezenas de estudantes que se amontoam pelos corredores, a caminho da terceira aula.
Ouço pedaços soltos de conversas quando eles passam. Parecem tão normais, e me
ocorre que nunca tive conversas desse tipo. Reclamar dos professores e combinar o que
fazer na sexta-feira à noite. Quem tem tempo para isso? Eu gostaria de estar conversando
assim com Thomas e Carmel. Gostaria de estar planejando uma festa, ou decidindo que
DVD alugar e em que casa assistir ao filme.
—Você pode nos contar sobre isso depois —Thomas diz, e está ali, em sua voz. Ele
sabe. Estou contente. —Devíamos nos concentrar em recuperar seu athame agora —ele
sugere. Concordo fragilmente com um gesto de cabeça. Como era mesmo que meu pai dizia? Pular da frigideira para o fogo. Ele ria de viver uma vida cheia de armadilhas.
—Alguém viu o Will? —pergunto.
—Tentei ligar para ele algumas vezes, mas ele não atende—Carmel responde.
— Vou ter que brigar com ele — digo, lamentando. — Eu gosto do Will e sei como
ele deve estar bravo. Mas ele não pode ficar com o punhal do meu pai. Não tem outro jeito.
O sinal toca para o início do terceiro período. Os corredores já se esvaziaram sem
que notássemos, e de repente nossas vozes soam alto. Não podemos ficar aqui parados;
logo algum inspetor com excesso de zelo virá nos mandar para a aula. Mas, para mim e
Thomas, agora é horário de sala de estudos e não estou coma menor vontade de ir.
— Quer cair fora? — ele pergunta, lendo minha mente. Ou talvez apenas sendo um
adolescente normal com boas ideias.
—Vamos nessa. E você, Carmel?
Ela dá de ombros e ajeita melhor o suéter creme.
—Tenho álgebra, mas quem precisa disso? E ainda não tenho nenhuma falta.
—Legal. Vamos comer alguma coisa.
—Sushi? —Thomas sugere.
— Pizza — Carmel e eu dizemos ao mesmo tempo, e ele sorri. Enquanto
caminhamos pelo corredor, eu me sinto aliviado. Em menos de um minuto, estaremos
fora desta escola e respirando o ar fresco de novembro, e qualquer um que tentar nos
deter vai dar coma cara na porta.
E então alguém bate em meu ombro.
—Ei.
Quando me viro, tudo o que vejo é um punho em direção ao meu rosto — isto é,
até sentir o ardor seco e os pontinhos multicoloridos que se seguem quando alguém te
acerta direto no nariz. Dobro o corpo e fecho os olhos. Sinto uma umidade quente e
pegajosa nos lábios. Meu nariz está sangrando.
— Will, o que você está fazendo? — ouço Carmel gritar, e então Thomas fala também, e Chase começa a grunhir. Há sons de luta.
— Não defendam esse cara — Will diz. — Vocês não viram as notícias? Alguém morreu por causa dele.
Abro os olhos. Will está me encarando, furioso, por sobre o ombro de Thomas.
Chase está pronto para pular em cima de mim, todo cabelos loiros espetados e camiseta
grudada nos músculos, louco para dar um empurrão em Thomas assim que seu líder der o sinal.
— Não foi ela. — Engulo o sangue no fundo da garganta. É salgado e tem gosto de
moeda velha. Passo as costas da mão no nariz, e elas saem manchadas de um vermelho brilhante.
Não foi ela — ele zomba. — Você não ouviu as testemunhas? Disseram que
ouviram gemidos e rosnados, mas de uma garganta humana. Disseram que ouviram uma
voz falando que não parecia humana de jeito nenhum. Disseram que o corpo estava em
seis pedaços. Parece alguém que você conhece?
— Parece muitos alguéns — respondo com irritação. — Parece qualquer psicopata
barato. —Só que não. E a voz falando sem parecer humana faz os cabelos se levantarem
em minha nuca.
— Você é tão cego — Will diz. — Isso é culpa sua. Desde que você chegou aqui,
primeiro foi o Mike, depois esse coitado no parque. — Ele para, põe a mão no bolso e
tira meu punhal. Depois o aponta para mim em um gesto de acusação. — Faça seu
trabalho!
Será que ele é idiota? Deve estar fora de si para tirar a faca assim, no meio da escola.
Ela vai ser confiscada, e ele vai ter de passar por visitas semanais ao psicólogo, ou ser
expulso, e eu vou ter de me enfiar sabe-se lá onde para consegui-la de volta.
—Devolva o punhal —digo. O som sai estranho; meu nariz parou de sangrar, mas
sinto o coágulo lá dentro. Se eu o aspirar para falar normalmente, vou engolir o tampão,
e o sangramento vai começar de novo.
—Por quê? —Will pergunta. —Você não usa. Então, de repente eu resolvo usar. —
Ele levanta a lâmina para Thomas. —O que será que acontece se eu cortar alguém vivo?
Ela manda a pessoa para o mesmo lugar que manda os mortos?
—Saia de perto dele—Carmel rosna e se coloca entre Thomas e o punhal.
—Carmel! —Thomas a puxa para trás.
— Está leal a ele agora, é? — Will pergunta e torce a boca, como se nunca tivesse
visto nada mais repugnante. —Mas nunca foi leal ao Mike.
Não gosto do caminho que isso está tomando. A verdade é que desconheço o que
aconteceria se o athame fosse usado em uma pessoa viva. Que eu saiba, ele nunca foi.
Não quero pensar no ferimento que poderia causar, se poderia esticar a pele de Thomas
sobre o rosto e deixar um buraco negro atrás. Preciso fazer alguma coisa, e às vezes isso
significa ser escroto.
—O Mike era um babaca —digo alto. Will se imobiliza de espanto, o que era minha intenção. —Ele não merecia lealdade. Nem da Carmel, nem sua.
Agora, toda a atenção dele se volta para mim. A lâmina cintila sob as lâmpadas
fluorescentes da escola. Também não quero minha pele esticada sobre o rosto, mas estou
curioso. Imagino se minha ligação com o athame, meu direito de sangue a ele, me
protegeria de alguma forma. Peso mentalmente as probabilidades. Será que devo me
lançar sobre ele? Lutar para pegar o punhal de volta?
Mas, em vez de se irritar, Will sorri.
—Eu vou matá-la, você sabe—diz ele. —A sua doce e pequena Anna.
Minha doce e pequena Anna. Será que eu sou assim tão transparente? Será que era
óbvio para todos, o tempo todo, menos para mim?
— Ela não está mais fraca, seu idiota — revido. — Você não vai conseguir chegar a
dois metros dela, com ou sem faca mágica.
— Vamos ver — ele responde, e sinto um vazio no coração ao ver meu athame, o
athame de meu pai, desaparecer de novo dentro do escuro da jaqueta dele. Mais que
qualquer coisa, quero avançar sobre ele, mas não posso correr o risco de que alguém se
machuque. Para piorar, Thomas e Carmel vêm se postar um de cada lado meu, prontos
para me deter.
— Aqui não — Thomas diz. — Nós vamos pegar o punhal de volta, não se
preocupe. Vamos encontrar um jeito.
— É melhor fazermos isso rápido — respondo, porque não sei se o que acabei de
dizer é verdade. Anna pôs na cabeça que tem de morrer. Talvez ela deixe Will passar por
sua porta para me poupar da dor de precisar fazer isso eu mesmo.

Anna Vestida de SangueOnde histórias criam vida. Descubra agora