Capítulo 18

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As imagens diante de mim poderiam muito bem ser uma reportagem sem som na tevê.
As luzes em todos os carros de polícia piscam em vermelho e branco, mas não há
sirenes. Os policiais caminham pela área vestidos com jaquetas pretas desbotadas, o
queixo baixo, a expressão séria. Estão tentando parecer calmos, como se isso acontecesse
todos os dias, mas alguns deles têm cara de que preferiam estar no meio de alguma moita
vomitando o conteúdo do estômago. Uns poucos usam o corpo para tampar a visão das
lentes curiosas das câmeras. E, em algum lugar no centro de tudo isso, está um corpo despedaçado.
Eu queria poder chegar mais perto, ter um crachá de imprensa no porta-luvas ou
dinheiro para comprar alguns policiais. Mas tudo o que posso fazer é tentar enxergar
pelas bordas da aglomeração da imprensa, atrás da fita amarela.
Não quero acreditar que tenha sido Anna. Isso significaria que a morte desse homem
é minha culpa. Não quero acreditar nisso, porque significaria que ela é incurável, que
não há redenção possível.
Enquanto a multidão observa, os policiais saem do parque com uma maca sobre
rodas. Sobre ela há um saco preto, que normalmente teria a forma de um corpo, mas, em
vez disso, parece conter equipamento de hóquei. Imagino que tenham juntado as partes
do homem o melhor que puderam. Quando a maca chega à calçada, os restos mortais
mudam de lugar com o movimento e, através do saco, podemos ver um dos membros
cair para um lado, claramente solto do corpo. As pessoas fazem um ruído abafado de
repulsa e incômodo. Abro caminho emmeio a elas e volto para o carro. 

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Retorno à casa e estaciono. Ela se surpreende ao me ver. Não faz nem uma hora que fui
embora. Quando meus pés pisam o cascalho, não sei se o barulho vem do chão ou do
ranger de meus dentes. A expressão de Anna muda de surpresa feliz para preocupação.
—Cas? Oque aconteceu?
— É o que eu quero saber. — Fico surpreso ao perceber como estou irritado. —  Onde você esteve na noite passada?
—Do que você está falando?
Ela precisa me convencer. Precisa ser muito convincente mesmo.
—Só me diga aonde foi. Oque você fez?
—Nada —ela responde. —Fiquei perto da casa. Testei minha força e...—Faz uma
pausa.
—E o quê, Anna?
A expressão dela se enrijece.
— Eu me escondi no meu quarto por um tempo. Depois que percebi que os
espíritos ainda estavam aqui. —Seus olhos parecem ressentidos, como se me dissessem: Pronto, feliz agora?
— Tem certeza que não saiu daqui? Não tentou explorar Thunder Bay de novo,
talvez ir até o parque e, sei lá, destroçar algum pobre inocente que estava se exercitando
por lá?
A expressão horrorizada no rosto dela faz minha raiva ceder um pouco. Abro a boca
para tentar consertar a merda que fiz, mas como explicar por que estou tão furioso?
Como explicar que ela precisa me dar um álibi melhor?
—Não acredito que você está me acusando.
— E eu não acredito que você não acredite — revido. Não sei por que não consigo
parar de ser tão agressivo. — Sem essa, Anna. As pessoas não são estraçalhadas nesta
cidade todos os dias. E, bem na noite em que eu libertei o fantasma assassino mais
poderoso do Ocidente, alguém aparece sem os braços e as pernas? É uma coincidência e
tanto, não acha?
—Mas é coincidência—ela insiste. Suas mãos delicadas estão fechadas em punhos.
— Você não lembra o que acabou de acontecer? — Gesticulo com irritação
apontando a casa. —Arrancar partes do corpo é, digamos, seu modus operandi.
—O que é modus operandi? —ela pergunta.
Sacudo a cabeça.
— Será que você não percebe o que isso significa? Não entende o que eu tenho que fazer se você continuar matando?
Quando ela não responde, minha língua enlouquecida segue em frente.
—Significa que vou ter que reencenar Meu melhor companheiro aqui — digo com
raiva. No minuto em que falo isso, sei que não deveria ter falado. Foi idiota e cruel, e ela
entendeu a referência. Claro que entenderia. Meu melhor companheiro deve ter sido
feito lá por 1955. Ela provavelmente viu o filme no cinema. O olhar que está me
dirigindo é de choque e mágoa; não sei se algum olhar já me fez sentir pior. Mesmo
assim, não consigo pedir desculpas. A ideia de que ela provavelmente é uma assassina me
impede de fazer isso.
—Não fui eu. Como você pode pensar que tenha sido? Não suporto o que eu já fiz!
Nenhum de nós diz mais nada. Nem sequer nos movemos. Anna está irritada e
tentando com muita força não chorar. Enquanto olhamos um para o outro, algo dentro
de mim tenta dar um clique, se encaixar. Sinto isso na mente e no peito, como uma peça
de quebra-cabeça que a gente sabe que tem de entrar em algum lugar e continua a tentar
enfiá-la por todos os ângulos. E então, de repente, ela se encaixa. De forma tão perfeita e
completa que não dá para imaginar como era sem ela, mesmo que só alguns segundos
antes.
— Desculpe — eu me ouço murmurar. — É só que... eu não sei o que está
acontecendo.
Os olhos de Anna se suavizam, e as lágrimas teimosas começam a se afastar. Pelo seu
jeito, pelo modo como respira, sei que ela está com vontade de chegar mais perto. Um
novo conhecimento enche o ar à nossa volta, e nenhum de nós quer absorvê-lo. Não
posso acreditar. Eu nunca fui disso.
—Você me salvou —Anna diz por fim. —Você me libertou. Mas só porque estou
livre, não significa... que eu posso ter as coisas que... — Ela se interrompe. Quer dizer
mais. Eu sei que quer. Mas, assim como eu sei que ela quer, também sei que não vai falarmais.
Posso vê-la convencer a si própria a não chegar mais perto de mim. Uma calma desce
sobre ela como um manto que cobre a melancolia e silencia qualquer desejo de algo
diferente. Mil argumentos se empilham em minha garganta, mas aperto os dentes para
eles não saírem. Não somos crianças, nenhum de nós. Não acreditamos em contos de
fadas. E, se acreditássemos, quem seríamos? Não o Príncipe Encantado e a Bela
Adormecida. Eu corto a cabeça de vítimas de assassinato, e Anna estica a pele até
arrebentá-la e quebra ossos em pedacinhos, como se fossem gravetos. Seríamos o dragão maldito e a fada do mal. Eu sei disso. Mas preciso falar.
—Isso não é justo.
Os lábios dela se curvam em um sorriso. Poderia ser amargo, poderia ser irônico,
mas não é.
— Você sabe o que você é, não sabe? — ela pergunta. — Você é minha salvação.Meu modo de me redimir. De pagar por tudo que fiz.
Quando percebo o que ela quer, parece que levei um chute no peito. Não me
surpreende que ela relute em namorar e sair saltitando entre as tulipas, mas nunca
imaginei, depois de tudo isso, que ela ia querer ser mandada embora.
—Anna—digo. —Não me peça para fazer isso.
Ela não responde.
—Para que serviu toda essa história? Por que eu lutei? Por que fizemos o feitiço? Se
fosse só para você...
—Vá pegar seu punhal de volta —ela responde, depois desaparece no ar bem diante
de mim, de volta para o outro mundo, aonde eu não posso segui-la.

Anna Vestida de SangueOnde histórias criam vida. Descubra agora