Capítulo 8

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—Ei. Ei, cara, está acordado?
Conheço essa voz. Não gosto dessa voz. Abro os olhos e lá está seu rosto, pairando  sobre mim.
— Você deixou a gente preocupado. Acho que não devíamos ter deixado você
dormir tanto tempo. Devíamos ter te levado para o hospital, mas não sabíamos o que  dizer a eles.
— Eu estou bem, Thomas. — Levanto a mão e esfrego os olhos, depois uso toda a
minha força de vontade e me sento, sabendo que meu mundo vai rodar e ondular tanto
que é possível que eu vomite. De alguma maneira, consigo virar as pernas e apoiá-las no
chão. —Oque aconteceu?
— É o que eu quero saber. — Ele acende um cigarro. Gostaria que o apagasse. Por
baixo daqueles cabelos desgrenhados e óculos, ele parece um menino de doze anos que
roubou um maço da bolsa da mãe. —Oque vocês estavam fazendo na casa dos Korlov?
— E o que você estava fazendo me seguindo? — revido, aceitando o copo de água
que ele me oferece.
— O que eu disse que ia fazer — responde. — Só que eu não imaginava que você
fosse precisar de tanta ajuda assim. Ninguém entra na casa dela. — Seus olhos azuis me
observam como se eu fosse alguma espécie nova de idiota.
—Bom, não foi bem simplesmente entrar e cair.
—Não achei que fosse. Mas não acredito que eles fizeram isso, te jogaram dentro da
casa e tentaram te matar.
Olho em volta. Não tenho a menor ideia do horário, mas tem sol, e eu estou em um
tipo de loja de antiguidades. O lugar é abarrotado, mas de coisas bonitas, não das pilhas
de velharias que a gente vê nos lugares mais baratos. Mesmo assim, cheira a gente velha.
Estou sentado em um velho sofá empoeirado, nos fundos, com um travesseiro
praticamente saturado de meu sangue seco. Pelo menos espero que seja o meu sangue
seco. Espero não ter dormido em algum pano velho carregado de hepatite.
Olho para Thomas. Ele parece furioso. Odeia o Exército Troiano; sem dúvida, eles
pegam no pé dele desde o jardim de infância. Um garoto magricela e esquisito como ele,
que diz ter poderes telepáticos e anda por lojas de antiguidades empoeiradas,
provavelmente era o alvo favorito de torturas escolares. Mas eles só querem perturbar.
Não acho que estivessem mesmo tentando me matar. Só não a levaram a sério. Não
acreditavam nas histórias. E, agora, um deles está morto.
— Que merda — digo em voz alta. Não há como saber o que vai acontecer com
Anna agora. Mike Andover não era um de seus andarilhos de passagem ou fugitivos
habituais. Ele era um dos atletas da escola, alguém da turma popular, e Chase viu tudo.
Só espero que ele esteja apavorado demais para ir à polícia.
Não que a polícia possa deter Anna, claro. Se eles entrassem naquela casa, só haveria
mais mortos. Talvez ela nem aparecesse para eles. Além do mais, Anna é minha. Sua
imagem se conjura em minha mente por um segundo, ameaçadora, pálida e pingando
vermelho. Mas meu cérebro ferido não consegue retê-la.
Olho para Thomas, que ainda fuma nervosamente.
—Obrigado por me tirar de lá—digo, e ele concorda num gesto de cabeça.
— Eu não queria — diz. — Quer dizer, eu queria, mas ver o Mike caído ali como
uma pilha desconjuntada não me deixou exatamente entusiasmado. —Ele suga o cigarro.
—Nossa, não posso acreditar que ele está morto. Não posso acreditar que ela o matou.
—Por que não? Você acreditava nela.
—Eu sei, mas nunca tinha visto. Ninguém vê Anna. Porque, se você vir Anna...
—Você não vive para contar a ninguém sobre isso —termino, sério.
Levanto os olhos ao som de passos nas tábuas frágeis do piso. Um homem velho
entrou, o tipo de velho com uma barba grisalha torcida que termina em uma trança. Ele
está usando uma camiseta muito gasta do Grateful Dead e um colete de couro. Há
tatuagens estranhas nos antebraços inteiros, mas nada que eu reconheça.
— Você é um garoto de muita sorte. Tenho que dizer que eu esperava mais de um
matador de fantasmas profissional.
Pego a sacola de gelo que ele me joga para pôr na cabeça. Está sorrindo em um rosto
semelhante a couro eme observando através de óculos de aro fino.
—Foi você que deu a dica para o Margarida. —Percebo na hora. —Achei que tinha sido o pequeno Thomas aqui.
Um sorriso é a única resposta. Mas é suficiente.
Thomas pigarreia.
—Este é o meu avô, Morfran Starling Sabin.
Não consigo não rir.
—Por que vocês, góticos, sempre têm nomes esquisitos?
—Palavras fortes vindas de alguém que anda por aí se chamando de Theseus Cassio.
Ele é um velho espirituoso, de quem se gosta de imediato, com uma voz que parece
saída de um filme western preto e branco. Não fico aborrecido por ele saber quem eu
sou. Na verdade, fico quase aliviado. Estou contente por ter encontrado outro membro
desse mundo clandestino peculiar, em que as pessoas conhecem meu trabalho, conhecem
minha reputação e conhecem a reputação de meu pai. Eu não vivo minha vida como um
super-herói. Preciso de pessoas que me apontem a direção certa. Preciso de pessoas que
saibam quem eu sou de fato. Só que não pessoas demais. Não sei por que Thomas não
me contou a verdade quando me encontrou perto do cemitério. Por que precisou se
mostrar todo misterioso daquele jeito.
—Como está a cabeça? —Thomas pergunta.
—Você não consegue descobrir, telepata?
Ele dá de ombros.
— Eu já disse, não sou tão telepata assim. Meu avô me contou que você ia chegar e
que eu devia te procurar. Eu leio mentes às vezes. Mas não a sua hoje. Talvez seja por
causa da concussão. Ou talvez eu não precise mais. Isso vai e vem.
—Ótimo, porque essa história de ler mentes me dá arrepios. —Olho para Morfran.
—Por que você mandou me chamar? E por que não falou para o Margarida marcar um
encontro entre nós quando eu chegasse aqui, em vez de mandar Mentok, o Tomador de
Mentes? — Aponto com a cabeça na direção de Thomas e me arrependo de imediato da
tentativa de ser engraçado. Minha cabeça ainda não está saudável o bastante para essas gracinhas.
— Eu queria você aqui depressa — ele explica, encolhendo os ombros. — Eu
conhecia o Margarida, e o Margarida conhecia você, pessoalmente. Ele avisou que você
não gostava de ser incomodado. Mas eu queria ficar de olho mesmo assim. Matador de
fantasmas ou não, você é só um garoto.
—Está bem—digo. —Mas qual é a pressa? Anna não está aqui há décadas?
Morfran se apoia no balcão de vidro e sacode a cabeça.
—Alguma coisa está mudando em Anna. Ela anda mais brava. Eu tenho ligação com
os mortos, mais do que você em muitos sentidos. Eu os vejo, e os sinto pensando,
pensando no que querem. É assim desde...
Ele dá de ombros. Há uma história aqui. Mas provavelmente é sua melhor história,
e ele não quer entregá-la tão rápido. Massageia as têmporas.
— Eu sinto quando ela mata. Toda vez que algum infeliz entra desavisado na casa
dela. Costumava não ser mais que uma coceira nas costas, entre os ombros. Mas, nos
últimos tempos, é uma reviravolta nas entranhas. Do jeito que era antes, ela não teria
nem aparecido para vocês. Ela está morta há muito tempo e não é boba, sabe a diferença
entre uma presa fácil e um filho de família poderosa. Mas está ficando descuidada. Vai
acabar se metendo na primeira página dos jornais. E você e eu sabemos que é melhor
manter algumas coisas em segredo.
Ele se senta em uma poltrona e bate a mão no joelho. Ouço os estalinhos de unhas
de cachorro no chão, e logo um labrador preto e gordo, com o focinho grisalho, aparece
e descansa a cabeça em seu colo.
Penso nos acontecimentos da noite anterior. Ela não é nada do que eu esperava,
embora agora, depois que a vi, seja difícil lembrar o que eu esperava antes. Talvez
achasse que ia ver uma menina triste e assustada que matava por medo e sofrimento.
Achava que ela ia descer lentamente as escadas em um vestido branco, com uma marca
escura no decote. Achei que teria dois sorrisos, um no rosto e um no pescoço, molhado
e vermelho. Achei que ia me perguntar por que eu estava em sua casa e, depois, avançar
sobre mim com pequenos dentes afiados.
Em vez disso, encontrei um fantasma com a força de uma tempestade, olhos negros e
mãos pálidas, não uma pessoa morta, mas uma deusa morta. Perséfone de volta do
Hades, ou Hécate semi decomposta.
O pensamento me faz estremecer um pouco, mas prefiro pôr a culpa na perda de
sangue.
—Oque você vai fazer agora? —Morfran pergunta.
Olho para o saco de gelo, que se derrete, tingido de rosa com meu sangue reidratado.
O item número um é ir para casa, tomar um banho e tentar evitar que minha mãe entre
em pânico eme lambuze com mais óleo de alecrim.
Depois, de volta à escola, a fim de fazer algum controle de danos com Carmel e o
Exército Troiano. Eles provavelmente não viram Thomas me tirar de lá; devem achar
que eu estou morto e marcaram uma reunião secreta muito dramática para decidir o que fazer a respeito de Mike e de mim, como explicar o que aconteceu. Sem dúvida, Will tem
algumas ótimas sugestões.
E, depois disso, de volta para a casa. Porque eu vi Anna matar. E preciso fazê-la  parar.

Anna Vestida de SangueOnde histórias criam vida. Descubra agora