Capítulo 21

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Eu queria sair agora. Queria muito sair agora. Sinto os cabelos em pé na nuca, e meus
dentes rangeriam se não estivessem tão apertados. Dada a escolha entre lutar ou fugir, eu
escolheria pular pela janela, mesmo empunhando o athame. Em vez disso, eu me viro e
chego mais perto de minha mãe, colocando-me entre ela e a porta aberta.
Os passos começam a descer a escada de mão, e meu coração nunca pulsou tão forte.
Minhas narinas captam o cheiro de fumaça doce. Fique firme, é o que eu penso. Depois
que isso acabar, talvez eu vomite. Supondo, claro, que ainda esteja vivo.
O ritmo dos passos, o som do que quer que esteja descendo os degraus, está
deixando minha mãe e a mim prestes a molhar as calças. Não podemos ser pegos dentro
deste quarto. Gostaria tanto que tudo isso não fosse verdade, mas é. Preciso chegar ao
corredor com minha mãe e tentar alcançar a escada para a sala antes que a coisa bloqueie
nossa fuga. Agarro a mão dela. Ela sacode a cabeça violentamente, mas eu a puxo,
aproximando-me da porta, como athame levantado à nossa frente como uma tocha.
Anna. Anna, entre arrebentando, Anna, venha salvar o dia...Mas isso é burrice. Ela
está presa na maldita varanda, e como seria se eu morresse aqui dentro, rasgado em
pedaços e mastigado como uma costeleta de porco borrachenta, e ela parada lá fora, sem
poder fazer nada?
Certo. Mais duas respirações profundas e saímos para o corredor. Talvez três.
Quando eu me movo, tenho uma visão clara da escada do sótão e, também, da coisa
descendo por ela. Não quero ver isso. Todo o treinamento e todos os fantasmas, todo o
instinto e toda a habilidade saem voando pela janela. Estou olhando para o assassino de
meu pai. Eu deveria estar enfurecido. Deveria estar em movimento, indo atrás dele. Em
vez disso, estou aterrorizado.
Ele está de costas para mim, e a escada do sótão está suficientemente longe da escada da sala para podermos chegar a ela antes dele, desde que continuemos nos movendo. E
desde que ele não se vire e ataque. Por que tenho esses pensamentos? Ele nem parece
inclinado a isso. Enquanto nos esgueiramos em silêncio em direção à escada, ele chega ao
corredor e até dá uma parada para empurrar a escada removível de volta para cima, com
um movimento desajeitado.
No alto dos degraus, paro e puxo minha mãe, para que ela desça na minha frente. A
figura no corredor não parece ter nos notado. Só continua oscilando de um lado para
outro, de costas para mim, como se estivesse ouvindo alguma música de mortos.
Ele usa um casaco escuro justo, mais ou menos como um paletó longo. Pode ser
preto desbotado ou mesmo verde-escuro, não sei dizer. No alto da cabeça, há um ninho
de dreadlocks, retorcidos e emaranhados, alguns semi apodrecidos e caindo. Não vejo
seu rosto, mas a pele das mãos é cinza e rachada. Entre os dedos, ele está enrolando o
que parece ser uma serpente negra.
Dou um empurrãozinho em minha mãe, para ela continuar descendo as escadas. Se
conseguir chegar até Anna, ficará segura. Estou sentindo uma pontinha de coragem, um
sopro do velho Cas voltando.
Então percebo que só estou tentando me enganar, quando ele se volta e olha direto
para mim.
Tenho de reformular isso. Não posso dizer de fato que ele está olhando direto para
mim. Porque não se pode ter certeza de que algo está olhando direto para você se os
olhos desse algo estão costurados.
E eles estão. Não há dúvida disso. Há grandes pontos de linha preta, em cruz, sobre
suas pálpebras. Mas também não há dúvida de que ele consegue me ver. Minha mãe fala
por nós dois quando solta um pequeno "Ah" gritado.
— De nada — ele diz naquela voz, a voz de meus pesadelos, como se estivesse
mastigando pregos enferrujados.
— Não tenho nada para agradecer a você — revido, e ele inclina a cabeça. Não me
pergunte como, mas sei que está olhando para meu punhal. Ele caminha em nossa
direção, sem medo.
—Talvez eu devesse agradecer a você, então —diz, e o sotaque fica evidente.
— O que está fazendo aqui? — pergunto. — Como entrou? Como passou pela  porta?
—Estive aqui o tempo todo —ele responde. Seus dentes são brancos e brilhantes. A
boca não émaior que a de qualquer homem. Como pode deixar marcas tão gigantescas?
Ele está sorrindo agora, com o queixo levantado. Tem um modo desajeitado de se
mover, como acontece com muitos fantasmas. Como se os membros estivessem
enrijecendo, ou os ligamentos apodrecendo. É só quando eles se movem para atacar que
vemos como são de verdade. Ele não vai me enganar.
— Impossível — protesto. — O feitiço teria mantido você do lado de fora. — E de
jeito nenhum eu posso ter dormido na mesma casa com o assassino de meu pai durante
todo esse tempo. Ele não pode ter estado um piso acima de mim, observando eescutando.
— Feitiços para manter os mortos do lado de fora não servem para nada se os
mortos já estiverem dentro — ele ironiza. — Eu entro e saio quando quero. Pego de
volta coisas que garotos tolos perdem. E desde então estive no sótão, comendo gatos.
Estive no sótão, comendo gatos. Olho melhor para a cobra preta que ele está
enrolando entre os dedos. É a cauda de Tybalt.
—Seu filho da...Você comeu meu gato! —grito, e obrigado, Tybalt, por um último
favor, essa irritada descarga de adrenalina. De repente, o silêncio é preenchido pelo som
de batidas. Anna me ouviu gritar e está socando a porta, perguntando se estou bem. A
cabeça do fantasma gira como uma serpente, em um movimento perturbador e  antinatural.
Minha mãe não sabe o que está acontecendo. Ela não sabe que Anna está na varanda,
então começa a se agarrar em mim, achando que se trata de mais um motivo para sentir  medo.
—Cas, o que é isso? —pergunta. —Como vamos sair?
—Não se preocupe, mãe. Não fique assustada.
— A menina que esperamos está logo ali — ele diz e avança arrastando os pés.
Minha mãe e eu descemos um degrau.
Estendo o braço sobre o corrimão. O athame brilha, e eu o trago à altura dos olhos.
—Fique longe dela.
— Foi atrás dela que nós viemos. — Ele se move com um farfalhar suave e oco,
como se seu corpo fosse uma ilusão e ele não passasse de roupas vazias.
Nós não viemos fazer nada — revido. — Eu vim matar um fantasma. E vou
aproveitar a oportunidade. —Faço um movimento brusco para a frente, sentindo minha
lâmina cortar o ar, a ponta prateada roçando os botões do casaco dele.
— Cas, não! — minha mãe grita e tenta me puxar para trás pelo braço. Ela precisa
cair na real. O que acha que eu estive fazendo esse tempo todo? Montando armadilhas elaboradas com molas, madeira e um ratinho em uma roda? Meu trabalho é corpo a
corpo. Isso é o que eu sei fazer.
Anna está batendo mais forte na porta. Ficar assim tão perto deve estar lhe dando
enxaqueca.
— É para isso que você está aqui, garoto — ele sibila e dá o bote sobre mim, mas
sem muito entusiasmo, errando longe o alvo. Não acho que ele errou por causa dos
olhos costurados. Está só brincando comigo. Outra pista disso é o fato de que ele estárindo.
— Estou curioso para saber como vai ser com você — digo. — Será que vai  murchar ou derreter?
—Não vou fazer nada disso —ele responde, ainda sorrindo.
— E se eu arrancar o seu braço? — pergunto, enquanto pulo para os degraus de
cima, coma lâmina recolhida e depois rasgando o ar em um arco rápido.
—Ele vai matar você sozinho!
Ele me dá um golpe no peito, e minha mãe e eu desabamos pelos degraus. Dói.
Muito. Mas pelo menos ele não está mais rindo. Na verdade, acho que finalmente
consegui irritá-lo. Ajudo minha mãe a se levantar.
—Você está bem? Não quebrou nada? —pergunto. Ela sacode a cabeça. —Vá para a
porta. —Enquanto ela se afasta apressada, eu me levanto. Ele está descendo a escada, sem
nenhum sinal da antiga rigidez cadavérica. É tão ágil quanto qualquer jovem vivo. —
Talvez você apenas evapore —digo, porque nunca tive a capacidade de manter a maldita
boca fechada. —Mas, pessoalmente, espero que exploda.
Ele respira fundo. Depois de novo. E de novo, sem soltar o ar. Seu peito vai se
enchendo como um balão, distendendo a caixa torácica. Ouço seus tendões, a ponto de
se partir. Então, antes que eu perceba o que está acontecendo, ele lança os braços em
minha direção e está cara a cara comigo. Foi tão rápido que mal pude ver. Minha mão
que empunha a faca está presa contra a parede, e ele me segura pelo colarinho. Bato no
pescoço e no ombro dele com a outra mão, mas é como um gatinho golpeando um
novelo de lã.
Ele solta toda aquela respiração presa, que sai por seus lábios em uma fumaça
espessa e doce, passando sobre meus olhos e invadindo minhas narinas, tão forte e
enjoativa que meus joelhos fraquejam.
De algum lugar atrás de mim, sinto as mãos de minha mãe. Ela está gritando meu
nome eme puxando.
— Ou você a entrega para mim, meu filho, ou vai morrer. — E ele me solta nos
braços de minha mãe. —A sujeira em seu corpo vai apodrecer você. Sua mente vai sair  pelos ouvidos.
Não consigo me mover. Não consigo falar. Respiro, mas não muito mais do que
isso, e me sinto distante. Entorpecido. Meio confuso. Percebo minha mãe gritando e se
inclinando sobre mim, enquanto Anna finalmente arrebenta a porta e a arranca das dobradiças.
—Por que não vem me pegar você mesmo? —ouço-a perguntar. Anna, minha forte
e aterrorizante Anna. Quero dizer a ela para ter cuidado, que aquela coisa tem truques
escondidos nas mangas putrefatas. Mas não consigo. Então minha mãe e eu nos
encolhemos no meio desta raivosa medição de forças entre os espíritos mais fortes que já encontramos.
—Cruze o limiar, menina bonita—ele a desafia.
— Venha você cruzar o meu — ela revida. Está lutando contra o feitiço de barreira;
sua cabeça deve estar quase tão cheia de pressão quanto a minha. Um fio fino de sangue
preto escorre de seu nariz e chega aos lábios. — Pegue a faca e venha, covarde — Anna
grita. —Venha para fora eme liberte desta coleira!
Ele está espumando de raiva. Temos olhos fixos nela, e seus dentes rangem.
— Seu sangue na minha lâmina, ou o garoto vai se juntar a nós de manhã.
Tento segurar o punhal com mais força. Mas não consigo sentir a mão. Anna está
gritando mais alguma coisa, mas não sei o que é. Meus ouvidos parecem cheios de
algodão. Não consigo mais escutar.

Anna Vestida de SangueOnde histórias criam vida. Descubra agora