Capítulo 16

155 14 0
                                    

Atrás de mim, ouço um barulho de queda e viro de costas para a cena, aliviado pela
distração. Dentro do círculo, Anna não está mais flutuando. Desabou no chão, sobre as
mãos e os joelhos. Os tentáculos pretos de seus cabelos se contorcem. Aboca está aberta
como se ela fosse gemer ou gritar, mas não há som. Lágrimas cinzentas descem em listras,
como água tingida de carvão, por suas faces pálidas. Ela assistiu à própria garganta sendo
cortada. Está vendo a si própria sangrar até a morte, a vermelhidão impregnando a casa e
saturando o vestido de baile branco. Todas essas coisas que ela não conseguia lembrar
acabaram de ser jogadas em sua cara. Ela está ficando fraca.
Olho outra vez para a morte de Anna, mesmo não querendo. Malvina está tirando a
roupa do corpo da filha e gritando ordens para Elias, que corre para a cozinha e volta
com o que parece ser um cobertor áspero. Ela lhe diz para cobrir o cadáver, e ele
obedece. É perceptível que ele não consegue acreditar no que aconteceu. Em seguida, ela o
manda subir até o quarto e pegar outro vestido para Anna.
—Outro vestido? Para quê? —ele pergunta, mas ela esbraveja:
— Vá de uma vez! — e ele sobe os degraus tão rápido que tropeça. Malvina estende
o vestido de Anna no chão, tão coberto de vermelho que agora é difícil lembrar que foi
branco. Então vai até o armário do outro lado da sala e volta segurando velas e uma
bolsinha pretas.
Ela é bruxa, Thomas sussurra mentalmente para mim. A maldição. Faz perfeito
sentido. Devíamos ter imaginado que o assassino era algum tipo de bruxo. Mas talvez
nunca tivéssemos pensado que seria a própria mãe.
Fique atento, respondo para Thomas. Posso precisar da sua ajuda para entender o
que está acontecendo aqui.
Duvido, ele diz, e acho que duvido também, vendo Malvina acender as velas e ajoelhar sobre o vestido, com o corpo balançando enquanto entoa baixinho palavras
suaves em finlandês. Sua voz é doce, como nunca foi para Anna em vida. As velas ficam
mais brilhantes. Ela levanta a da esquerda, depois a da direita. Cera preta se derrama
sobre o tecido manchado. Em seguida ela cospe no vestido, três vezes. Seu canto é mais
alto agora, mas não entendo nada que ela diz. Começo a tentar identificar palavras, para
procurar em algum dicionário mais tarde, e é quando o ouço. Thomas. Ele está falando
baixo, mas de verdade. Por um segundo, não sei o que está dizendo. Chego a abrir a
boca para mandá-lo ficar quieto, que estou tentando escutar, antes de perceber que ele
está repetindo os cânticos dela, traduzidos.
—Pai Hiisi, escuta-me, venho diante de ti mansa e humilde. Aceita este sangue, aceita
esta energia. Mantém minha filha nesta casa. Alimenta-a de sofrimento, sangue e morte.
Hiisi, Pai, deus-demônio, escuta minha oração. Aceita este sangue, aceita esta energia.
Malvina fecha os olhos, levanta a faca de cozinha e a passa na chama das velas.
Impossivelmente, a lâmina pega fogo, e então, em um movimento enérgico, ela enfia a faca
nas tábuas do piso através do vestido.
Elias apareceu no alto da escada, segurando um tecido branco e limpo: o outro
vestido de Anna. Ele observa Malvina com espanto e horror. É evidente que nunca
soube disso sobre ela; agora que sabe, jamais falará uma palavra sequer contra ela, por puro terror.
A luz do fogo emana do buraco no piso, e Malvina move lentamente a faca, enfiando
o vestido ensanguentado dentro da casa enquanto canta. Quando todo o tecido
desaparece sob as tábuas, ela empurra o resto da faca junto e a chama luminosa emite um
clarão. O chão se fecha. Malvina engole, depois apaga suavemente as velas, da esquerda
para a direita.
—Agora, você nunca sairá de minha casa—murmura.
Nosso feitiço está acabando. O rosto de Malvina está se desvanecendo como uma
lembrança de pesadelo, tornando-se tão cinzento e gasto quanto a madeira em que ela
assassinou Anna. O ar ao redor perde a cor, e sinto que nossas pernas começam a se
desenlaçar. Estamos nos separando, rompendo o círculo. Ouço Thomas respirando
forte. Ouço Anna também. Não posso acreditar no que acabamos de ver. Parece irreal.
Não entendo como Malvina pôde matar Anna.
— Como ela pôde? — Carmel pergunta baixinho, e todos nos entreolhamos. — Foi
horrível. Nunca mais quero ver nada assim. —Ela sacode a cabeça. —Como pôde? Era
filha dela. Olho para Anna, ainda vestida de sangue e veias. As lágrimas escuras secaram em seurosto; ela está exausta demais para continuar chorando.
— Ela sabia o que ia acontecer? — pergunto a Thomas. — Sabia no que estava
transformando a filha?
— Acho que não. Ou, pelo menos, não exatamente. Quando você invoca um
demônio, não pode decidir os detalhes. Você só faz o pedido, e ele cuida do resto.
—Pouco me importa se ela sabia exatamente — Carmel grunhe. — Foi repugnante.  Foi horrível.
Há gotículas de suor na testa de cada um de nós. Will não disse uma palavra. Todos
parecemos ter saído de uma luta de doze assaltos com um peso-pesado.
— O que vamos fazer? — Thomas pergunta, e ele mesmo não parece capaz de fazer
muita coisa no momento. Acho que vai dormir por uma semana.
Eu me volto e fico em pé. Preciso clarear a mente.
— Cas! Cuidado! — Carmel grita para mim, mas não é rápida o suficiente. Sou
empurrado por trás e, ao mesmo tempo, sinto um peso muito familiar sendo puxado de
meu bolso. Quando olho, vejo Will de pé sobre Anna. Empunhando meu athame.
—Will —Thomas começa, mas ele tira minha faca da bainha e a movimenta em um
arco amplo, fazendo Thomas se afastar depressa sobre os joelhos, a fimde se esquivar.
— É assim que você faz, não é? — Will pergunta, com a voz exaltada. Olha para a
lâmina e pisca rapidamente. —Ela está fraca. Podemos fazer agora —diz, quase que para
si mesmo.
—Will, não —Carmel pede.
—Por que não? Foi isso que viemos fazer!
Carmel me olha com ar desamparado. Isso é o que viemos fazer. Mas, depois do que
todos vimos, e vendo-a caída ali, eu sei que não posso.
—Devolva o meu punhal —digo calmamente.
—Ela matou o Mike—Will afirma. —Ela matou o Mike.
Dirijo o olhar para Anna. Seus olhos pretos estão muito abertos e voltados para
baixo, embora eu não possa dizer se estão vendo alguma coisa. Ela está desabada sobre o
quadril, fraca demais para sustentar o corpo. Os braços, que eu sei, por experiência
pessoal, que poderiam esmagar blocos de concreto, estão trêmulos apenas do esforço de
tentar impedir o tronco de despencar no chão. Nós conseguimos reduzir esse monstro a
uma casca vacilante, e, se há um momento seguro para matá-la, é agora.
E Will tem razão. Ela de fato assassinou Mike. Assassinou dezenas de pessoas. E vai fazê-lo de novo.
— Você matou o Mike — Will fala com raiva e começa a chorar. — Você matou o
meu melhor amigo. — E então ele se move e desce a lâmina sobre ela. Eu reajo sem  pensar.
Dou um salto à frente e seguro seu braço por baixo, impedindo que o golpe acerte
direto as costas dela; em vez disso, só atinge as costelas de raspão. Anna dá um pequeno
grito e tenta fugir se arrastando. A voz de Carmel e de Thomas está em meus ouvidos,
gritando para nós dois pararmos, mas continuamos lutando. Will arreganha os dentes e
tenta golpeá-la outra vez, a faca cortando o ar. Eu mal consigo levantar o ombro para
atingi-lo no queixo. Ele oscila alguns passos para trás e, quando revida, eu lhe dou um
soco no rosto, não com força excessiva, mas o bastante para fazê-lo refletir.
Ele limpa a boca com as costas da mão e não tenta avançar de novo. Seu olhar
passeia de mim para Anna, sabendo que eu não vou deixá-lo passar.
— Qual é o seu problema? — ele pergunta. — Este não é o seu trabalho? E, agora
que ela está nas nossas mãos, você não vai fazer nada?
— Não sei o que vou fazer — digo com sinceridade. — Mas não vou deixar que
você a machuque. Porque matar você não ia conseguir mesmo.
—Por que não?
—Porque não é só o punhal. Sou eu. É o meu laço de sangue.
Will faz um som de desdém.
—Ela está sangrando bem demais.
— Eu não disse que o punhal não é especial. Mas o golpe fatal é meu. O que quer
que seja que faz isso acontecer, você não tem.
— Você está mentindo — ele acusa, e talvez eu esteja. Nunca vi ninguém mais usar
minha faca. Ninguém, exceto meu pai. Talvez toda essa história de ser o escolhido e fazer
parte de uma linhagem sagrada de caçadores de fantasmas seja só um monte de merda.
Mas Will acredita. Ele começa a recuar para fora da casa.
—Devolva o meu punhal —digo de novo, vendo-a se afastar, o metal reluzindo sob
a luz estranha.
— Eu vou matar Anna — Will promete, depois se vira e corre, levando o athame.
Algo dentro de mim geme, algo infantil e básico. É como aquela cena de O mágico de
Oz, em que a velha põe o cachorro no cesto da bicicleta e vai embora. Meus pés estão
me dizendo para correr atrás dele, alcançá-lo e acertar-lhe um golpe na cabeça, pegar
minha faca de volta e nunca mais deixá-la fora de vista. Mas Carmel está falando comigo. —Tem certeza de que ele não pode matar como punhal? —ela pergunta.
Olho para trás. Ela está ajoelhada ao lado de Anna; teve até coragem de tocá-la, de
segurá-la pelos ombros e examinar o ferimento que Will fez. Está saindo sangue negro do
corte, com um efeito estranho: o líquido preto se mistura ao sangue que flui do vestido,
formando espirais, como tinta derramada em água vermelha.
—Ela está tão fraca—Carmel murmura. —Acho que está ferida de verdade.
—E não deveria estar? —Thomas pergunta. —Olha, eu não quero ficar do lado do
Will Cadê-Minha-Indicação-Ao-Emmy Rosenberg, mas não é para isso que estamos aqui?
Ela não continua sendo perigosa?
As respostas são sim, sim e sim. Eu sei disso, mas não consigo pensar direito. A
garota aos meus pés está derrotada, meu punhal se foi e cenas de Como matar sua filha
continuam a passar pela minha cabeça. Foi aqui que tudo aconteceu. Este é o lugar onde
sua vida acabou, onde ela se tornou um monstro, onde sua mãe enfiou uma faca em sua
garganta e amaldiçoou a filha, e o vestido, e...
Caminho pela sala de estar, olhando as tábuas do piso. Então começo a andar com
força. Abater o pé na madeira e pular, à procura de uma tábua solta. Não está adiantando
nada. Sou um idiota. Não sou forte o bastante. E nem sequer sei o que estou fazendo.
—Não é essa —Thomas diz. Ele está olhando fixo para o chão e aponta para a tábua
a minha esquerda. —É essa. E você vai precisar de alguma coisa. —Ele se levanta e corre
para fora da casa. Eu não achava que ainda lhe restasse alguma energia. O garoto é
surpreendente. E útil pra caramba, porque, uns quarenta segundos depois, está de volta,
trazendo um pé de cabra e uma chave de roda.
Juntos, começamos a bater no piso, no início sem nenhum efeito, mas, aos poucos,
conseguimos rachar a madeira. Uso o pé de cabra para levantar a ponta solta e me
ajoelho. O buraco que fizemos é escuro e fundo. Não sei como ele está ali. Eu deveria
estar vendo vigas e porão, mas há apenas negrume. Foi só um breve momento de
hesitação antes que minha mão já estivesse procurando dentro do buraco, sentindo
profundezas de frio. Acho que eu estava errado, que estou sendo idiota outra vez. Então
meus dedos roçam algo.
O tecido é rígido e frio ao toque. Talvez um pouco úmido. Eu o puxo do lugar onde
foi enfiado e fechado sessenta anos atrás.
—O vestido —Carmel sussurra. —Oque...?
— Não sei — digo com sinceridade. Caminho em direção a Anna. Não tenho ideia
do efeito que o vestido terá sobre ela, se tiver algum. Será que a fará mais forte? Poderá curá-la? Se eu o queimasse, ela evaporaria no ar? Thomas provavelmente teria uma ideia
melhor. Juntos, ele e Morfran talvez pudessem encontrar a resposta certa e, se não
pudessem, Gideon o faria. Mas eu não tenho todo esse tempo. Ajoelho-me e seguro o
tecido manchado diante dos olhos dela.
Por um segundo, ela não reage. Então, se esforça para ficar em pé. Eu levanto o
vestido ensanguentado ao mesmo tempo em que ela se ergue, mantendo-o na altura de
seus olhos. Acor negra regrediu: os olhos claros e curiosos de Anna estão ali, dentro do
rosto monstruoso, e por alguma razão isso é o que mais desconcerta. Minha mão está
tremendo. Ela está parada diante de mim, sem flutuar, só olhando para o vestido,
amarfanhado e vermelho e branco sujo em algumas partes.
Ainda sem ter certeza do que estou fazendo, ou do que estou tentando fazer, junto o
tecido na bainha e o faço deslizar por sobre a cabeça escura e contorcente de Anna. Algo
acontece de imediato, mas não sei o quê. Uma tensão se instala no ar, um frio. É difícil
explicar, como se houvesse uma brisa, mas nada se movesse. Puxo o velho vestido para
baixo, cobrindo com ele o vestido gotejante de sangue, e dou um passo para trás. Anna
fecha os olhos e respira fundo. Ainda há fios de cera preta grudados no tecido, nos
pontos em que as velas pingaram durante a maldição.
—Oque está acontecendo? —Carmel sussurra.
—Não sei —Thomas responde por mim.
Enquanto observamos, os vestidos começam a lutar um com o outro, pingando
sangue e líquido preto e tentando se fundir. Os olhos de Anna estão fechados. Os
punhos estão apertados. Não sei o que vai acontecer, mas, o que quer que seja, está
acontecendo rápido. Cada vez que pisco, abro os olhos para um novo vestido: agora
branco, depois vermelho, depois enegrecido e mesclado a sangue. São óleo, tinta e coisas
afundando em areia. E então Anna joga a cabeça para trás, e o vestido amaldiçoado se
esfacela, se desintegra em pó e cai a seus pés.
A deusa escura está aqui, olhando para mim. Longos fios negros se estendem e
desaparecem na brisa. As veias recuam nos braços e no pescoço. Seu vestido é branco e
sem manchas. Aferida causada por minha lâmina desapareceu.
Anna põe a mão no rosto, numa expressão de descrença, e olha timidamente de
Carmel para mim e para Thomas, que recua um passo. Então ela se vira muito devagar e
caminha em direção à porta aberta. Pouco antes de sair, Anna olha para trás e sorri para  mim.

Anna Vestida de SangueOnde histórias criam vida. Descubra agora