Prólogo

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Sentia minhas entranhas se comprimirem  cada vez que seu pé pisava um pouco mais fundo no acelerador, minha garganta queimou com o ácido estomacal que veio até a metade e retornou, inspirei fundo.

- Você está bem? - Ela indagou com seu tom duro de sempre, assenti, sentindo uma fina camada de suor cobrir a minha testa e escorrer por minhas têmporas, o cheiro, o maldito cheiro havia grudado no meu nariz e ali se fixado, ela virou-se pra frente e continuou fingindo estar concentrada demais na pista sem nenhum movimento.

E então, duas horas depois de longos silêncios e suspiros doloridas havíamos chegado, o bairro estava como nas minhas lembranças, belas casas com suas pequenas cercas brancas, e lindos jardins na frente de cada uma delas, mas nenhum se comparava á última casa do extenso quarteirão, a casa de dois andares do período vitoriano, meu  coração acelerou assim que tive uma mínima visão dela.

Esta já não estava como nas minhas lembranças, o velho carvalho que ocupava uma boa parte do jardim selvagem dera lugar á um jardim de verdade, com lindas flores, um balanço e até um conjunto de mesa para o chá da tarde, as parede antes tingidas com cores vibrantes agora eram quase que completamente tomadas por tons pastéis, inspirei sentindo o ácido repugnante invadir novamente minha boca, e a queimação se espalhar por minhas entranhas, vovó parou o carro.

- Vamos, desça, você parece que vai vomitar á qualquer instante. - Assenti, abrindo a porta do passageiro e pulando fora, ela saiu indo até o porta-malas e instantes depois voltando com as duas malas de rodinhas, e a mochila.

- Obrigada vovó. - O reflexo de um sorriso surgiu no canto da sua boca, tão rápido que eu poderia dizer que havia sido apenas a minha imaginação, mas logo sua carranca diária surgiu e seu tom severo manifestou-se.
- Por favor Emily, não faça nenhuma estupidez sim?! Sei que isto não é fácil para você, mas precisa tentar ser compreensiva, toda a família passa por um momento muito difícil agora. - Assenti, ciente de tudo o que a "família" passava, por que de todos os membros daquela família, eu, mais do que qualquer um estava sofrendo.
- Eu sei que neste momento, você precisa do seu pai. É o melhor para você, é o melhor para todos. - Disse fazendo o possível para desamarrotar minha roupa, assenti impassível. - Não se preocupe com nada, você tem todos os meus números, e sabe que pode ligar á qualquer hora em caso de emergências não é mesmo?!

- Claro vovó. - Não, não sei.

- Quer, quer que eu te acompanhe? - Indagou depois que um longo silêncio desconfortável se seguiu, encarei o caminho formado por pequenas pedras cristalinas, e depois á encarei.

- Não é necessário, obrigada. - Ela assentiu sem fazer menção de se oferecer uma segunda vez, senti meu estômago afundar.

- Bom, boa sorte querida. - Disse jogando seus braços finos sobre meus ombros e me dando um abraço fraco.

- Cuide-se. - Assenti capturando minhas duas malas  e seguindo o pequeno caminho de pedras, sem fazer questão de olhar para trás.
Não era como se minha vida antes fosse perfeita, não era como se alguém pudesse ter a vida perfeita, perfeição era o mito da sociedade moderna, uma lenda, mas eu vivera bons dias dentro daquela casa, bons dias antes da minha família ruir, e da minha vida ser sugada. 1, 2,3 ... Nada, encarei o reflexo do vidro da porta me perguntando se aquela campainha estava quebrada, mas então, um vulto se mexeu atrás do vidro opaco e eu encarei meus pés sem saber se estava pronta para aquilo.

A porta abriu-se com um estrondo e sua figura surgiu diante de mim, eu engoli seco levando meio segundo para recuperar a coragem e encará-lo, ainda era ele, agora com alguns fios brancos e rugas também, mas ainda eram seus olhos, ainda era seu cabelo, ainda era seu nariz...
Ainda era meu pai, ele me capturou com seus grandes braços e se moveu contra mim, me pressionando contra ele, inspirei contra seu peito sentindo o cheiro familiar guardado em minha mente, ficamos ali por alguns minutos, nenhum dos dois com coragem suficiente para romper o frágil laço que nos unira novamente, até eu finalmente me afastar, ao ser golpeada por lembranças doloridas, ele me soltou, um enorme sorriso estampado em sua face, e os olhos vermelhos.

DESAPAIXONADAOnde histórias criam vida. Descubra agora