EXORCIZANDO MEUS DEMÔNIOS

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Eu sou atéia, nunca acreditei em céu nem inferno, nem em Deus, nem no Diabo, e a fé não fazia falta em minha vida. Estudei ciências e obtive sucesso em minha carreira, conquistei toneladas de bens materiais, e nunca, jamais, me senti mal por "não ter Deus no coração." Achava que religião era coisa de gente burra e alienada, que espera as coisas caírem do céu em vez de batalhar e encarar a vida de frente.

Apesar de tudo, sei que existe o bem e o mal. Isso vem da natureza humana, é parte de nossa consciência como animais, além da racionalidade. Você escolhe se vai agir pelo bem ou pelo mal, e isso te guia pela vida. As pessoas são responsáveis pelos seus atos e são julgadas por isso aqui mesmo, sofrendo o que têm de sofrer em suas vidas miseráveis, cheias de culpa. Porquê depois que se morre, não há mais nada. Deixamos de existir e apenas o reflexo de nossos atos bons ou ruins sobram neste mundo sem Deus.

Isso tudo é tão elementar que eu não entendo como tem gente que não chega a essa conclusão por si só. Religiosos estúpidos, se ajoelhando diante de estátuas inanimadas e frias, implorando por ajuda a um ser que nunca responde, simplesmente porquê não existe. Não há ponto em acreditar no que você não pode ver com os próprios olhos. Tentar descobrir além do científico atrasa as pessoas, pode até leva-las a loucura. Não faltam os fanáticos católicos que matam qualquer um, achando que estão agindo de acordo com suas crenças.

Porém, hoje eu comprovo um velho ditado: "Não existem ateus nas trincheiras."  Quando você chega ao limite do sofrimento, seu lado racional se rende. Você precisa crer em algo para seguir em frente. Você precisa gritar por socorro a alguém. E você chama Deus, acreditando ou não na entidade em si, você sabe que precisa existir algo além de maldade neste mundo.  Alguém que tenha misericórdia por você, quando ninguém mais pode ter. Alguém que te afaste do abismo, não importa quem você é, não importa o que você fez no passado. É muito difícil acreditar que exista algo tão bom, certo? Talvez, nesse momento, a morte represente a paz. Talvez a única saída seja abraçar a morte como se ela fosse mesmo um anjo que viesse ao seu encontro quando você não aguenta mais continuar.

Agora eu sou uma dessas pessoas. Estou desesperada, rezando para algo que não acredito. Isto é por causa de uma simples notícia que li hoje no jornal:

"Foi encontrado o cadáver de Maria Aparecida Magalhães, desaparecida em 25 de outubro de 1986, aos 3 anos de idade. Estava enterrado no jardim de trás de sua antiga casa, sob um canteiro de rosas. Uma autópsia revelou que ela foi morta por asfixia. Os principais suspeitos são os familiares mais próximos, devido ao local onde o corpo foi sepultado."

Maria Aparecida era minha irmã. Como eu odiava aquela pirralha, desde o dia em que ela nasceu. Eu tinha apenas 3 anos a mais do que ela, mas me achava muito madura, e não suportava a sua tagarelice. Quando ela era bebê, não parava de chorar um segundo sequer, e quando cresceu mais um pouco, estava sempre me perturbando, tentando puxar assunto comigo, tentando ser minha amiga. Ela devia saber que um dia eu simplesmente perderia a paciência. Eu sempre fui capaz de me controlar para não partir para a violência.

Até uma noite, em que eu precisava muito pegar no sono, mas minha irmã tinha outros planos. Dormíamos no mesmo quarto, em camas separadas, mas ela sempre subia na minha. Ela me cutucava com seus dedinhos gorduchos e gelados, parecendo uma aranha em contato com a minha pele.

- Quer brincar?

Esses bebês têm energia infinita. Não entendem que os mais velhos não são assim. Toda hora eu a afastava à base de tapas, e sempre ela voltava a me irritar, insistente.

- Por favor, maninha, vamos brincar.

Ela começava a rir, e eu percebia que estava debochando de mim. Isso aumentava minha raiva. Nunca eu havia chegado àquele nível de raiva. Devia ser o cansaço. Na verdade, não sei explicar o que deu em mim naquele momento, só sei que algo mais forte do que eu me fez saltar sobre Maria.

As risadas deram lugar a gemidos e gritos. De alguma forma eu consegui imobiliza-la no chão, então agarrei o lençol e o enfiei dentro de sua boca o máximo que consegui. Só queria que ela ficasse quieta. No fundo eu sabia que estava machucando-a, mas ela merecia, para aprender a não se meter comigo. Depois de um tempo, ela parou de arfar. Na verdade, não emitia mais qualquer ruído. Eu podia sentir seu corpinho amolecendo sob mim.

Quando percebi que havia sufocado minha irmã e que sua vida se esvaía, já era tarde demais. Arranquei o lençol da boca dela. A ponta estava encharcada de saliva e sangue. Eu tentei fazê-la voltar a respirar, mas não havia como. Me dei conta do que fiz e comecei a chorar, muito alto, o suficiente para meus pais ouvirem.

Eu havia matado minha irmãzinha.

Desmoronei no chão ao lado dela e fiquei em choque, tremendo na posição fetal. A encarei com olhos arregalados e percebi o quanto ela parecia serena. Poderia estar apenas dormindo, se não fosse pelo fio de sangue que ainda escorria de seus lábios entreabertos. Até na morte ela debochava de mim.

Meus pais entraram e, ao se depararem com a cena, não souberam o que pensar. Isso se conseguissem pensar naquela situação. Minha mãe pegou minha irmã inerte no colo e começou a soluçar. Meu pai parecia prestes a ter um ataque, tremendo sem conseguir sair da frente da porta, mas depois de um tempo ele disse apenas:

- Precisamos nos livrar do corpo. Como vamos explicar isso à polícia?

Ninguém iria acusa-lo de ser insensível, assim como ninguém iria acusar aquela garotinha de 6 anos de idade de ser uma psicopata. Ele era apenas racional. A racionalidade é o que salva nessas horas.

Naquela mesma madrugada, em silêncio, carregamos o pequeno cadáver até um espaço vazio do jardim de trás. Cavamos usando uma pá de jardinagem, e cobrimos a terra revolvida com sementes de rosa, não para fazer uma homenagem àquela criança inocente morta antes do tempo, mas para que ninguém desconfiasse. Se descobrissem, alguém levaria a culpa pela morte anti-natural. E menininhas não sabem o que fazem. 

Depois fingimos que ela desapareceu. Fingimos estar desesperados atrás dela, enquanto ela jazia na própria casa, em uma cova sem nome. Com o passar do tempo, fingimos esquecer e tentávamos ser felizes como antes.

Mas eu não conseguia, pois às vezes acordava no meio da noite com uma voz infantil me perguntando se eu queria brincar. Vinha direto da janela do meu quarto, que dava para o maldito jardim. A voz ficava mais próxima, depois era substituída por uma risada que eu só posso descrever como demoníaca. Então de repente eu não conseguia mais respirar. Eu tentava não abrir meus olhos pois sabia o que veria, mas lá estava o que costumava ser Maria Aparecida. Literalmente um demônio em forma de menina, com sangue pingando de sua boca em cima do meu rosto. Seu olhos completamente negros me encaravam famintos e vidrados. Ela queria que eu tivesse o mesmo fim que ela. Queria brincar comigo no inferno.

Eu sempre acordava gritando, nas muitas vezes em que isso aconteceu. Eu contei o suposto pesadelo aos meus pais e eles tentaram não demonstrar o quanto ficaram aterrorizados. Agiram racionalmente como de costume, me levaram a um psiquiatra, que me diagnosticou com uma tal de "paralisia do sono". Eu tomei meus medicamentos. Nem pergunte se ajudaram em algo. Eu sabia que não estava alucinando, mas tentei mentir para mim mesma.

Menti para mim mesma por anos, na verdade, e por anos minha irmã me assombrou. Me tornei ateia, tentando convencer a mim mesma e aos outros de que seres como ela não existiam. Mas isso não os tornava menos reais ou menos ameaçadores. Eu sabia que um dia ela conseguiria sua vingança. Só não sabia como. Agora percebi. Junto com o cadáver de uma criança, uma mentira com décadas de idade foi desenterrada. 

Enquanto aperto mais firme o nó da corda em volta do meu pescoço, já posso praticamente ouvir  o som das sirenes da polícia tocando do lado de fora de minha casa. Meus pais morreram há muito tempo, é óbvio que os detetives vão atrás de mim, tentando solucionar o caso. Cansei de mentir. Prefiro acabar logo com o sofrimento que me acompanha desde a infância, e sei qual é a única forma de fazer isso.

Antes de chutar o banco que me sustenta, porém, ouço uma voz familiar e debochada. É claro que minha irmã viria me fazer uma última visita, em vez de me deixar partir em paz. Ela está lá, atrás da porta. Com a sua camisola branca coberta de sangue e terra. Com seu sorriso vermelho e mortífero. Com seus olhos negros refletindo minha imagem esmaecida. E com chifres brotando de sua testa e asas de morcego três vezes maiores do que o seu corpinho a sustentando no ar. Sempre soube que aquela menina era um demônio por dentro. Sorri de volta para ela, abandonando minha sanidade, para em seguida abandonar minha vida.

- Finalmente, você quer brincar?

NÃO DURMA... (CONCLUÍDO)Onde histórias criam vida. Descubra agora