♤Capítulo 17♤

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Eu havia sonhado com ela novamente.

Foi o que pensei quando acordei no início da tarde ensopada em suor. Naquele momento, ainda cega pelo meu próprio medo, não enxerguei as luzes que transpassavam as janelas, nem como elas banhavam o quarto, mas tampouco vi Jason sentado novamente ao meu lado.

Me culpei quando o medo passou, me culpei por ter cedido ao seu afago, por ter sentido necessidade dele, mas nem minha culpa conseguiu ocupar o rosto que parecia pairar em minha cabeça. Não o de Amélia, como na noite passada, mas do garotinho com seu cavalo de madeira.

Ele continuava aparecendo para mim, como uma propaganda, como se dissesse, como se insistisse, "se lembre de mim". E eu lembrei, do garotinho rabugento com uma figura franzina, com uma pele de tom doente, como se nunca antes tivesse visto o sol, com pouca agilidade nas mãos, mas com força de vontade o suficiente para fazer a faca descer seu caminho pela madeira. Eu me lembrei, porque sabia quem ele era.

Porque seria estúpida se não soubesse.

Então eu o olhava agora, com mais atenção do que no dia anterior, vendo-o ser tão cuidadoso enquanto pintava os lábios da boneca sob as lentes da lupa. Curvado com desleixo sobre a escrivaninha entulhada de materiais de pintura e costura. Verniz, tinta, palhetas, sprays, linha, mesmo moldes de onde eu acreditava que as bonecas haviam sido feitas.

O olhava porque ainda ainda não conseguia acreditar que havia sido real. Porque não sabia se meu subconsciente estava me forçando a enxergá-lo de forma humana, se eu estava inconscientemente procurando razões para não odiá-lo, se aqueles sonhos não possuíam significado, ou se eles possuíam. A possibilidade de que eles, de fato, significavam algo, parecia me assustar mais do que todas as outras.

Então eu me agarrava ao estofado do banco onde estava sentada desde que acordei e fui guiada para sua sala de trabalho, o olhando enfeitar pequenas bonecas com as cores que eu quisesse, com os vestidos que quisesse, com os moldes e formatos que quisesse. Tão bonitas que pareciam reais, mas tão trabalhosas que parecia inoportuno.

- Não vai me contar? - Quase me assustei. O banquinho tremeu quando me mexi, uma perna era mais curta do que as outras, parecia.

- Contar o quê?

Jason sorriu, apenas um pouco, sem tirar os olhos da boneca. - Sabe do que eu estou falando.

Sabia, mas não queria dizer nada. Não podia dizer nada.

Encarei meus pés, que se encostavam nas barras do banco, ainda longe do chão. - Não há nada para contar, não me lembro do sonho.

- Sempre foi uma boa mentirosa, Sófia, mas não parece estar se esforçando o suficiente dessa vez.

Não havia sobrado força de vontade o suficiente em mim para atuação.

- Se sabe que estou mentindo porque ainda pergunta?

- Sempre dou a chance de que me falem a verdade. É como um sinal de boa fé. - Já estava acabando de pintar a curvatura dos lábios quando me falou isso, por alguma razão parecia que meu tempo estava acabando.

Tive vontade de tamborilar os dedos na madeira do banco, mas me segurei, não queria que percebesse que estava nervosa. Ou mais nervosa do que ele presumiu que estivesse. Não podia contar a verdade, então teria de pensar rápido, uma boa desculpa, crua e verdadeira o suficiente para que acreditasse, algo de verdade que a complementasse. Minha unha raspou no estofado. Olhei para a boneca, como se procurasse algo.

Era de porcelana, a boneca, tudo feito a mão. Argila, Quartzo, Caulim e outro material que não me recordo. Tem que pô-la no forno, Jason havia me explicado mais cedo, logo depois de cobri-la com uma camada de esmalte, em uma temperatura muito alta. Não faça isso sozinha, ele me advertiu. Como se eu fosse mesmo fazer algo assim. Eu não gostava de trabalho pesado, nunca gostei, evitava tudo o que se fizesse necessário esforço. Quem iria gostar de se aventurar nisso seria Melanie, Melanie adorava decorações, passava horas na mesa da sala costurando retalhos de estrelas nas costas da mochila, ou então imprimindo logos de camisetas em lojas e fazendo os próprios giz de cera. Melanie com certeza adoraria-

Oh.

- Não acho que vai querer saber.

- Me teste. - Havia começado.

- Vai ficar bravo se souber. - Mordi o lábio, como se estivesse realmente receosa.

Ele parou de pintar, não porque se exaltou com minha resposta, mas porque já havia acabado seu trabalho - Espera tão pouco de mim que me dói, Sófia. - Afastou a lupa do rosto, que se prendia a escrivaninha por algo que eu também não sabia o nome. - Sempre fiz tudo o que pude para deixá-la feliz, e tudo o que quero fazer agora é ajudá-la. Mas para isso preciso que me conte. - Desgraçado hipócrita, falava como se não tivesse me ameaçado há menos de dois minutos.

Esperei, como se hesitasse. Desviava os olhos dele, os fazendo passar pelo quarto, pensando na melhor maneira de organizar as palavras. - Sonho com eles. - Engoli em seco, os olhos trêmulos.

Jason não me perguntou, me encarou pacientemente enquanto eu parecia me recompor.

- Vejo sangue descendo de um muro como água, vejo corpos estraçalhados em uma ruela e caixões fechados. Meus sapatos estão molhados pela chuva e minha pele está suja pela lama, mas não importa o quanto eu queira, não consigo parar de olhar... - Engasguei, de verdade dessa vez. - para os meus amigos mortos.

De subto já me sentia mal de verdade, mas se precisasse espremer essa história para que conseguisse sobreviver, a espremeria até que não sobrasse mais nada.

- Então a chuva passa, e minha pele coça porque meu chapéu caiu, mas estou chocada demais vendo a cabeça dele se mexer contra o vento para apanhá-lo. Me vejo correndo pelos corredores como se eles não tivessem fim. E quando acordo, me pergunto se os que ainda continuam vivos estão bem.

Jason permaneceu calado, o rosto que quase formava uma careta, não estava conseguindo esconder o descontentamento. Não sentia culpa, tampouco, não iria se desculpar ou me reconfortar. Ele apenas manejou a cabeça, a careta aos poucos se desfazendo, como se dissesse que entendia, e não me incomodou mais sobre o assunto.

Meu peito parecia queimar, no entanto, pela mentira que contei. Me senti suja por usá-la, e triste por me lembrar dela. Onde Melanie poderia ter ido? Estava bem? E Taehyung? Fizeram-no um funeral? Esperava que sim. Era um menino problemático, mas bondoso, muito mais do que outros que já conheci.

- Qual vai ser a cor do cabelo? - Quase me assustei mais uma vez, o banquinho tremeu. Jason olhava para a boneca, os fios que formariam a peruca próximos as suas mãos.

Ponderei, também olhando para a boneca e me assustando ao perceber como a fiz parecida com Melanie, os olhos castanhos, a pele pintada em um tom de mel brilhante, as roupas coloridas. Não havia me esquecido dela, no fim das contas...

- Azul. Quero que seja azul.

Jason pareceu estático por um segundo, um muito breve, antes de se levantar e ir atrás das cores que precisava. Não havia fios azuis na mesa. Voltou segurando uma caixa e sentou, meio abrupto, em sua cadeira. O assisti colar os fios na cabeça da boneca, o que surpreendentemente não demorou muito. Quando terminou, a largou na escrivaninha, encostada em um canto, sentada. Iria dá-la para mim depois, ele disse, precisava esperar a cola secar. Assenti e me levantei do banquinho, que tremeu mais uma vez, e fui direto para o quarto.

Não houve um dia sequer que não me arrependi pela mentira que contei.

Under The Sun • Jason The Toymaker •Onde histórias criam vida. Descubra agora