Capítulo Um

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 Últimos dias de maio de 1933. Anos depois a história usaria a palavra holodomor para definir os acontecimentos que levaram à morte por fome milhões de ucranianos entre os anos de 1931 e 1933.

Assim como o holocausto nazista contra os judeus, o holodomor consistiu em um genocídio contra a população da Ucrânia empreendido pelo comunismo soviético, que era liderado por Stalin.

Desde os anos de 1921, no período após a Primeira Grande Guerra, uma onda de fome assolara a então chamada União Soviética.

Milhões de pessoas haviam morrido. Dois anos antes, Lênin confiscara plantações de grãos. A população ficara sem comida e invés de plantar as sementes para depois colher, comera o pouco que sobrara. O canibalismo estabeleceu-se em cadáveres... E então crianças passaram a ser raptadas para serem comidas.

A atrocidade de holodomor remonta às políticas econômicas que Stalin passou a empregar logo que assumiu o poder, em 1928.

Uma das medidas empregadas consistia em controlar a produção de cereais dos países da União Soviética. Seguiu-se, depois, a política de coletivização forçada das propriedades agrícolas, cuja administração passou a ser completamente racionalizada pelo Estado soviético.

A Ucrânia foi o país da URSS que mais demonstrou resistência a tais medidas. A autonomia cultural ucraniana e sua forte identidade nacional tornavam-na intolerável aos anseios dos soviéticos russos.

A revolta dos camponeses ucranianos contra as medidas de coletivização forçada e requisição compulsória de cereais obrigou Stalin a aplicar medidas ainda mais drásticas do que aquelas que foram executadas em outras regiões.

Stalin, então, passou a traçar uma campanha antiucraniana com o objetivo de demonstrar que a postura desse país era nociva com relação aos anseios comunistas.

Inicialmente, houve uma sistemática humilhação de intelectuais ucranianos, que foram submetidos a julgamentos vexaminosos e ridicularizações diversas.

Depois dessas medidas, Stalin passou a atacar os próprios camponeses. A partir de 1929, deu-se início a uma ferrenha estipulação de metas de produção de cereais, destinados ao poder central soviético, que passaram a ser exigidas dos camponeses da Ucrânia.

A rigidez era tão grande que esses camponeses só conseguiriam atender à demanda se deixassem de consumir sua parte do que era produzido, isto é, só se passassem fome, de fato.

Tudo passou a ser de propriedade do governo. Muitas pessoas foram presas e condenadas a trabalhos forçados simplesmente por comerem batatas ou colherem espigas de milho para consumo.

Progressivamente, a morte foi se acentuando na Ucrânia. Entre 1931 e 1933, o número de mortos era tão grande que os cadáveres se espalhavam pelas ruas e pelos campos. O odor dos corpos apodrecidos dominava regiões inteiras.

Nesse contexto, em dois de junho de 1933 nasceria Danlov Kraemer. Sua mãe Irina chegara a um prostíbulo dez meses antes. Com ela viera também o filho Ianovick, que tinha nove anos.

Com vinte e oito anos, apesar de toda a fome que passava Irina ainda era uma bela mulher. Alta e magra, até porque todos estavam quase esqueléticos na Ucrânia, com longos cabelos ruivos e olhos verdes num rosto pontilhado de sardas, ela conservava firmeza, determinação e dons artísticos. Cantava e dançava muito bem. Isso interessou a Giovanna, uma cafetina italiana que viera para a pequena cidade ucraniana há décadas atrás.

  O prostíbulo funcionava espremido entre onde antes era o mercado de venda de peixe e o mercado de venda de carne. No passado, quando havia comida, a velha casa misturava os odores de vísceras e escamas dos peixes que eram limpos todas as manhãs e escorriam a céu aberto, com os de carnes putrefatas, que não haviam sido vendidas e depois de jogadas nas encostas de um rio eram disputadas por gatos e cachorros magros, que foram desprezados por seus donos, sob alegação de que ali seria "farto de comida".

Triste realidade para Irina... Prostitutas bêbadas, vestidas de trapos sujos disputavam um ou outro velho impotente que aparecia por ali. Aquele não parecia o universo de Irina. Afinal, ela nunca relacionara amor com necessidade de sobreviver. Deitara no mato, com personalidade forte ditara regras num relacionamento, sempre fora livre e quando soube que estava grávida de um namorado, enfrentara todas as dificuldades para ter o direito de ser mãe. Mas vender seu corpo a clientes nauseabundos nunca estivera em seus planos...

E o primeiro cliente chegou... Com o estômago revirado, porém firme na convicção de que o comprador chega e se dirige ao vendedor que lhe atende melhor, ela venderia bem a "mercadoria". E foram para o quarto...

Um banheiro, com toalha única para todos os que entrassem, estava à disposição. O cliente disse que em casa tomara banho... Ali não seria necessário.

E numa cama de lençóis fedidos, que depois Irina descobriu que eram trocados uma vez por semana, salvo alguma vez que algum velho cliente de esfíncteres frouxos defecava na cama após o sexo, ela recebeu o dinheiro de seu primeiro cliente... Ela e seu filho teriam um teto e algo para comer, enquanto ela conseguisse desempenhar as funções de prostituta.

Uma confusão enorme porque uma mulher foi para o quarto e ao deitar, sentiu os cabelos afundados em algo pastoso... Uma enorme quantidade de fezes de gatos na cama... Essa era a norma de higiene do tal prostíbulo.

Os fregueses eram poucos e disputavam uma mulher, com roupas minúsculas, saltos altíssimos e dentes faltando... Mas aceitava deitar com qualquer um, mesmo que tivesse doenças venéreas. Então, tinha clientela certa.

Nesse universo, Irina conheceu Anatoli, filho de Giovanna e de um soldado alemão. Mais jovem que ela, ele se apaixonou e exigiu que Irina fosse retirada da sala dos clientes e passasse a ser exclusividade sua.

E Irina engravidou de Anatoli. Naquele trinta e um de maio entrou em trabalho de parto. A fome e as dificuldades pelas quais passara durante a gravidez dificultaram o parto e Irina sofreu as dores terríveis durante por dois dias.

Durante as dores, desejou ter morrido de fome, seria  mais fácil que aguentar tantas dores. Mas havia Ianovick e por ele valeria a pena passar todas as atrocidades.

Ianovick nascera em tempos já difíceis, porém nascera de uma relação prazerosa. Muito embora tenha ficado sozinha, ela desejara ver o rostinho do filho, amara o pai dele.

Já a segunda gravidez fora indesejada, fruto da necessidade, de uma convivência forçada como escrava sexual de Anatoli. Irina desejou morrer com o filho na barriga.

Porém demostrando uma enorme capacidade de sobrevivência, roxo por falta de oxigenação e com a cabeça disforme pelas mãos de Giovanna que acumulava a função de parteira, Danlov nasceu em dois de junho.

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