Capítulo Três

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  Aqueles homens, na verdade pensaram em trocar a criança por um pouco de  dinheiro numa cidade com alguma prosperidade. Porém a presença da estranha criatura não os deixava a vontade. Os olhinhos de um azul mortiço eram fixos em cada movimento, como se cada gesto deles fosse absorvido, fotografado.

Então, no primeiro mosteiro que encontraram no caminho, entregaram a criança em troca de um lugar para dormir e no outro dia partiram aliviados por se livrar do pequeno fardo, que parecia paradoxalmente tão pesado.

A vida no mosteiro não era de todo ruim. Não havia gritos de mulheres. Somente os gritos e as vozes inexplicáveis dos sonhos de Danlov.

Na vastidão do mosteiro havia muitos jovens padres e o silêncio deles agradava. Sentia raiva do pai e da avó. Principalmente da avó. Antes todas as atenções eram para ele e depois que ela repartira com seu pai e ele se sentira só. Ali no mosteiro seria o lugar ideal para exercitar a solidão.

E assim o tempo foi se passando e por vezes ele via padres na escuridão, ajoelhados, com a cabeça entre as pernas dos que estavam nos confessionários. Vinham então lembranças longínquas da boca morna de sua avó, e ele balançava energicamente a cabeça para afastar os tais pensamentos, ditos impuros.

Sob uma lei de voto de celibato, pensar em mulheres era feio e sujo. O que estariam fazendo os padres se era o mesmo que era feito entre ele e sua avó e entre sua avó e seu pai?

Em seus longos silêncios ele já conseguia entender que sua mãe e seu irmão não haviam ido simplesmente embora e sim que haviam morrido e que aquele saco, guardado nas lembranças infantis como símbolo de força do pai, certamente levara o corpo de sua mãe para ser jogado em qualquer encosta.

Assim que Ianovick sumira, houve dias de mesa farta. Havia carne e ele comera da carne do próprio irmão sem ter ciência do que estava fazendo!

Suas noites continuavam atordoadas por vozes e gritos. Gritos de dor do gato esquálido de sua avó, que se engasgava de fome enquanto morria.Gritos de horror das pessoas que ainda vivas eram despedaçadas e cozinhadas em grandes panelas, para alimentar os que ficavam vivos sem saber por quanto tempo, os gritos das prostitutas ao serem agarradas pelos homens fedorentos... Gritos e fogo... Seu pai e sua avó, o inferno, os demônios negros e vermelhos, horrendos, fedidos, a espetar seu pai e sua avó, que estendiam as mãos e o arrancavam da velha e desconfortável cama de pedra onde dormia...

Gritos e fogo... Depois do fogo, o silêncio, pesado, como se estivesse tudo acabado, como se os tridentes dos demônios tivessem trespassado seu corpo frágil e ele tivesse morrido.

A paz da morte, o descanso, um abrigo... Em sonhos já não gostava tanto de seu pai e queria ir para junto de sua mãe de seu irmão. Morto, livre e descansado. E acordava molhado.

Sempre depois de cada um desses sonhos, o cheiro forte de urina pairava no cubículo que dormia e ele se tornava objeto de piadas dos colegas que se amontoavam no mesmo espaço que ele.

O sabão de péssima qualidade, feito com a gordura quase inexistente de algum animal silvestre que caia nas armadilhas e era retirado por Danlov que o jogava na soda caustica e ficava olhando maravilhado enquanto vivo, estertorava, derretendo para transformar-se numa pasta sangrenta e fétida que não limpava e nem tirava o fedor forte que com o passar dos dias passava despercebido aos moradores do mosteiro.

Aos treze anos, agora tomava consciência que um mundo desconhecido o esperava. Há quase dez anos chegara ali e a ideia de horizonte resumia-se ao mundo de dentro do mosteiro. Agora fora expulso desse mundo e obrigado a enfrentar o desconhecido. Então, depois de um último olhar, a figura franzina caminhou pela estrada e perdeu-se na primeira curva do caminho.

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