2 - Amor e ódio, história de infância.

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De volta a solidão do meu quarto, ainda tinham várias caixas para arrumar, respirei fundo e comecei a guardar minhas coisas, havíamos nos mudado fazia alguns dias, amanhã eu começaria em uma nova escola, novo bairro, novos amigos, novo tudo. Mas quem se importa? Eu não era popular na antiga escola, não era uma pessoa querida então não faz grande diferença, pelo contrário pro inferno aquele bando de babaca!

Sabe aquela garota que senta na frente e todos pensam que ela é nerd, mas ela não tira notas boas, não se esforça, na maior parte do tempo está presente ali, mas a mente está longe? Essa era eu!

Antes eu gostava de pensar "sou burra", então a minha desculpa para tudo era "sou burra demais para tirar uma boa nota", então percebi que eu não era burra, ninguém é burro, apenas não se esforça.

E eu não me esforçava, não estudava, costumava dizer que meu cérebro estava "marinando", agora no último ano longe das pessoas para as quais eu queria parecer legal. Sim, porque embora eu fosse apenas a garota tímida que sentava na frente, ainda tentava impressionar meus "amigos" e eu não sei o porquê, mas ser burra parece que é algo em alta, então eu não me esforçava porque assim ficava na média nem burra nem nerd.

Esse comportamento apenas me afundou, então agora pretendo focar, afinal a escola não foi feita para ficar paquerando, até porque o que me leva achar fulano ou ciclano bonito? Eu não tomarei a iniciativa, não arrumarei um namorado e será isso. Então vou me focar e tentar recuperar o tempo perdido, até porque homem só empata a vida.

Arrumei meu material para usar amanhã e me senti feliz por minha irmã Débora ter arrumado emprego, pois assim ela quem comprou o meu material, então não era algo tão ruim. Quando o material escolar ficava a cargo da minha mãe, a coisa ficava feia...

Ainda me lembro quando eu tinha sete anos todas as meninas tinham lancheiras cor de rosa da Barbie e eu tinha uma vermelha do rei leão, não é que eu não goste da história, mas era lancheira de menino ao meu ver, porém o pior foi a mochila, todas as meninas tinham mochilas cheias de frescuras e eu? Uma mochila horrível roxa e preta com desenho mal feito dos "Power Rangers", que ela comprou porque estava barato.

Geralmente não reclamo, minhas roupas são baratas, meus acessórios baratos, mas eu não me importo, só não queria usar algo tão ridículo, quero dizer também não vivemos na miséria que ela gosta de pintar, nossa casa não é um barraco na favela, é uma boa casa com bons moveis, eletrodomésticos e por dentro até que é confortável.

Posso parecer amargurada, porem eu não sairei gritando isso, existem coisas que não devem ser ditas, pois as palavras machucam mais do que uma faca as vezes. Minha mãe fazia o que ela achava que era certo, mas o certo para ela não era o certo para mim, eu não tinha dinheiro para comprar melhor então eu ficava calada.

— SARAH VEM COMER! – gritou minha mãe e eu bufei.

—JÁ VOU – gritei de volta.

— SE DEMORAR, VAI ACABAR! – ela gritou e eu me levantei, com coisa que acabaria. Isso tudo era apenas drama.

A comunicação entre nós muitas vezes era assim, uma berrando com a outra para facilitar, ela não ia querer subir as escadas apenas para falar comigo e nem eu iria descer apenas para responder, então berrávamos e estava tudo certo. Não era apenas eu e minha mãe, a comunicação familiar era basicamente assim quando não estávamos no mesmo cômodo.

Desci e Débora estava à mesa jantando, meu pai também e minha mãe estava indo com seu prato em direção à mesa. Peguei meu jantar e fui me sentar à mesa em silêncio.

— Animada para a escola nova? – perguntou Débora para mim.

— Claro, assim como eu me animo quando estou doente – respondi com sarcasmo, ela riu.

Eu tinha duas irmãs, Alice e Débora, ambas mais velhas que eu. Alice tinha uma diferença de dez anos enquanto Débora sete, ambas tinham belos cabelos cacheados, olhos castanhos escuros (como os meus), eram muito bonitas e mais baixas que eu. Segundo minha mãe eu era a única que puxei para a estatura do meu pai.

As vezes era quase como morar com anãs, brincadeira! Eu era basicamente cinco centímetros mais alta que elas (incluindo minha mãe). Alice não morava mais conosco, ela estava casada e morando longe.

— Que grosseria, Sarah – me repreendeu meu pai, ele era um homem alto, bem moreno, com olhos castanhos mel, as vezes variava para verde amendoado, eram lindos olhos que eu morria de inveja, já que os meus olhos eram castanho-escuros e comuns. Meu pai era um homem corpulento e com uma "pança" bem avantajada.

Não respondi, Déb puxou conversa e os três começaram a conversar sobre a faculdade dela, enquanto a xuxu pedia comida para o meu pai fazendo malabarismos que cachorros treinados fazem, detalhe que ela só faz isso quando pede comida, cachorra sacana essa.

Débora era a filha pródiga, estava cursando administração em uma faculdade, fazia tudo que eles queriam, gostava das mesmas coisas que eles (ou fingia bem). Não me entenda mal, eu gostava muito dela, ela era tipo minha melhor amiga, mas esse negócio de filha prodígio me incomodava um pouco, não que eu estivesse disposta a fazer tudo que ela fazia, como por exemplo gostar de ir nas festas de família. Cruzes! Mas não era muito agradável sentir-se deslocada.

Após o jantar eu me despedi dizendo que voltaria ao meu quarto para dormir, meus pais foram ver TV/Novela e minha irmã perfeita subiu as escadas comigo.

— Eu e a Taty vamos sair na terça, talvez beber na frente da faculdade – contou animada.

— Posso ir? – perguntei animada.

— Claro! Vou dizer para a nossa mãe que vamos ao cinema.

— Fechou! Boa noite, Deby – me despedi, ela acenou e caminhou para seu quarto enquanto eu fui para o meu.

Xuxu subiu as escadas sorrateira e foi com ela, olhei com enfado.

Entrei em meu quarto, jogando minha roupa pelo chão e indo pegar meu pijama puído, que minha mãe comprou na baciada onde estava escrito "pequenos defeitos" e eles vendiam pela metade do preço. Em compensação tinha um buraco perto das costelas.

Sair amanhã, adoro!

Obviamente eu sabia que não era certo beber nada alcoólico antes dos dezoito, é o que diz a lei, se não, não seria proibido e todas essas coisas, mas eu era bem consciente com isso, eu nunca fazia nada de errado ou perdia os sentidos e a noção do que eu deveria ou não fazer, então Deby me levava para onde ela ia, afinal eu jamais iria subir na mesa e cantar, ou começar um strip.

Resolvi tentar dormir, nova escola, vida nova! Eu já podia me imaginar, eu faria o tipo inteligente popular, eu seria aquela garota admirável... Ok, isso foi um devaneio bem distante, desce dessa nuvem que não lhe pertence Sarah e volte à realidade, a realidade é nada mudaria e eu continuaria sendo a mesma tonta calada do canto.

Escutei quando minha mãe berrou lá de baixo.

— XUXU! JÁ PARA A SUA CASINHA, LÁ FORA!

Senti certa satisfação, eu e a xuxu tínhamos um relacionamento meio... conturbado.

Tecnicamente ela era minha, mas ela me odiava! Vivíamos em uma linha tênue entre o amor e ódio, sempre que ela podia me desprezava, mas se eu tivesse comendo algo que parecesse apetitoso, ela era minha melhor amiga.

Eu a ganhei quando tinha quatro anos, ela é mestiça a Pequinez, dizem que essa raça não curte crianças, então explica um pouco essa relação conturbada que existe entre eu e ela.

Nunca vou me esquecer, eu tinha seis anos e no meu aniversário combinei que deria a chupeta em troca de uma "Barbie de três peruquinhas" (uma boneca que vinha careca com três perucas e você podia trocar o cabelo dela de acordo com o humor), vendida nos melhores camelôs de qualquer lugar. Pois bem, me deram a boneca e eu prometi que não seria mais usuária dessa "droga infantil".

Eu estava feliz com a minha boneca barata e careca, até o dia que a xuxu pegou a boneca e deixou apenas os braços e o tronco da boneca, comendo todo resto (até minha cachorra me sacaneava), tudo em prova de seu imenso afeto, claro porque ela não mexia nas coisas das minhas irmãs, só comia as minhas.

Essa é a linha tênue entre o amor e o ódio. Com o tempo se aprende a superar isso e conviver, com um cão que te odeia.


Um Conto (NADA) Encantado [CONCLUÍDA]Onde histórias criam vida. Descubra agora