Sempre acreditei fielmente que todo homem deveria criar raízes. Ter apego físico e emocional a um lugar e a pessoas. Um porto seguro para onde voltar, com pessoas em quem poderia sempre confiar. Mas hoje me sinto como um barco a deriva no mar. Simplesmente sendo jogado de um lado para o outro pela maré. Me perguntando: "Onde eu perdi o controle da minha vida? Como me deixei destruir por dentro a esse ponto?"
Eu estou onde sempre quis estar. Mas a sensação não é como eu esperava. Conhecer a Itália sempre foi meu grande desejo. Mas agora parece algo tão vazio. O vento frio do inverno toca meu rosto e o único ponto de calor que sinto vem da xícara de café em minhas mãos. Porque até mesmo aquele calor no peito de estar vivenciando a viajem dos sonhos já não existe mais...
Sentado à mesa daquela cafeteria em Perugia, longe de qualquer lugar que um dia já chamei de lar, eu era apenas mais uma alma. Apenas um indigente aos olhos de qualquer transeunte. Tão perdido em meus pensamentos que talvez nem eu mesmo me reconhecesse.
Meus delírios são bruscamente interrompidos por um leve toque em meu ombro e uma voz familiar e que esbanjava satisfação:
- Gabriel, meu velho amigo...
A visão daquele rapaz que estampava um largo sorriso foi tão nostálgica para mim que não tive palavras para responder ao seu cumprimento. Apenas me levantei, sorri e abracei Samuel. Vê-lo novamente era como abrir um velho álbum de fotos e relembrar antigos momentos de alegria.
Samuel era um homem alto, com traços fortes e firmes. Mas que conseguia manter um ar de calma e compreensão. Assim como eu, Samuel beirava os trinta anos de idade. Mas não exibia o mesmo desgaste físico. Enquanto ele parecia jovial, eu demonstrava a aura de um homem bem mais velho e cansado.
- Ainda carregando o mundo nas costas, Gabriel?
- Não mais... Mas minhas cicatrizes ainda doem.
- Sempre vão doer. Elas servem para te lembrar das coisas que você passou e dos erros que cometeu, para que não erre de novo. E justamente por isso queria te ver.
- Pretende me lembrar dos meus erros?
- Sim... Mas para te ajudar. E quem sabe ajudar outras pessoas também.
Sempre confiei muito em Samuel. Nos conhecemos no colégio. E em meio aos conflitos de adolescência, ele sempre foi um ombro amigo nas horas difíceis. Com o passar dos anos as coisas não mudaram. Ele sempre me serviu de psicólogo em momentos de tribulação. E eu sempre o apoiei no que pude. Não seria difícil lhe dar mais esse voto de confiança.
Pelas grandes janelas de vidro da cafeteria se via que a escuridão já tomava conta das ruas. A conversa com Samuel mal havia começado, mas eu já sabia que atravessaria a madrugada. Ele afastou minha xícara de café com uma das mãos enquanto vasculhava com a outra o bolso de seu casaco.
Com os olhos fixos em mim, mantendo o olhar calmo de sempre, ele retira do bolso um velho caderno. Não era qualquer caderno. Era muito familiar para mim. Era meu caderno. Parte da minha história, como se fosse uma parte de mim mesmo. A capa vermelha, surrada. As folhas amareladas pelo tempo. Era como se eu estive me vendo ali, nas mãos dele.
Não pude disfarçar o nó na garganta. As lembranças me invadiram como se uma onda tivesse me atingido. O frio do inverno Italiano não era tão forte quanto o frio que surgiu no meu peito. Eu perdi o chão naquele momento.
Enquanto meu semblante mostrava uma mistura de surpresa e tristeza, Samuel manteve o mesmo olhar de compaixão. Ele colocou o velho caderno sobre a mesa de madeira. Se inclinou e com um tom brando, simplesmente disse:
- Alguém muito especial me pediu para lhe entregar isso.
Confesso que muitas pessoas passaram pela minha mente, assim como muitas pessoas passaram pela minha vida. Mas para mim não fazia sentido que qualquer uma delas tivesse feito tal pedido.
- Porque acha que eu aceitaria esse caderno de volta? Ele não me trás alegrias mais.
- Mas já trouxe um dia. Não pode fugir de quem você é. E esse caderno mostra exatamente quem você é.
-E quem você acha que eu sou? O herói ou o vilão?
- Algumas histórias simplesmente devem ser contadas. Sem se preocupar com protagonistas ou antagonistas.
Em meio ao embrulho no estomago e a confusão mental que me afligiu, aceitei abrir o baú de memórias. Já sabia a dor que isso me causaria. Mas como um tratamento doloroso para uma doença grave, talvez essa dor fosse necessária.
Continuava sem entender bem o que estava acontecendo ou os motivos que levaram Samuel a me encontrar e levar aquele caderno consigo. No entanto, como uma armadilha, aquele caderno antigo me atraiu. Talvez as feras sempre saibam que as armadilhas existem. Mas o cheiro da carne fresca parece compensar a dor de perder o jogo contra o caçador.Triste ilusão.
Me inclinei sobre a mesa apoiando os cotovelos na borda. Minhas mãos caíram lentamente pelo ar em direção ao caderno. Era como se a o ambiente tivesse se tornado mais denso.
Quando as pontas dos meus dedos tocaram a velha capa vermelha, foi como se minha mente tivesse explodido. Até mesmo a textura do material me trazia lembranças. O cheiro do papel, o peso do material, tudo me arrebatava para meu passado.
Eu viajei para a Itália para realizar o sonho de conhecer o país de grandes artistas e de beleza descomunal. A ligação de um velho amigo que também estava na região era como uma cereja no bolo. Não esperava que esse encontro se tornaria uma terapia de regressão para uma vida não-passada.
Fiquei olhando aquele caderno em minhas mãos por alguns minutos. Eu estava em completo silêncio por fora, mas gritava a plenos pulmões por dentro. Eu era assombrado por fantasmas do passado todos os dias. E agora eles estavam materializados ali, na minha frente. Era mais assustador do que eu poderia imaginar.
- Você ainda desenha? – Samuel interrompe suavemente meu devaneio.
- Não. Nem mesmo rabiscos sem sentido. Nada.
- Você sabe que esse é seu Dom. Sua mãe dizia a todos que essa foi a dádiva que Deus lhe deu.
- Um ateu que acredita em presentes de Deus? Cada vez fico mais impressionado com você Samuel.
- Meu ateísmo nunca me impediu de respeitar as suas crenças, Gabriel.
- Não tenho mais crenças...
- Não tem ou não quer ter?
Levantei meu olhar e encarei Samuel. Ele já me conhecia a tantos anos que não conseguia mais esconder nada dele. Éramos como irmãos. Ele sabia o quanto eu estava destruído e queria me ajudar. Acho que foi nesse instante que eu baixei a guarda.
Fugir do passado é tão difícil quanto tentar segurar fumaça com as mãos. Chega um momento em que o melhor a se fazer é olhar para trás, desatar os nós que restaram e continuar vivendo. O que esta feito, está feito. E agora era a hora de encarar os meus fantasmas...
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Entre Lobos e Cordeiros
RomanceEm um inesperado reencontro com um velho amigo, Gabriel recebe um presente que vai fazê-lo reviver cenas de um passado que ele luta para esquecer. Entre as lembranças de intrigas, discussões e desejos latentes surgem questionamentos pertinentes à to...