capítulo IV

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     - ... mas tu nunca me ouves! - As palavras da mulher, foram jogadas no ar, não capturadas pelos ouvidos indulgentes do rapaz, sentado à mesa, observando todos os lugares, menos a interlocutora das reprimendas que lhe eram dirigidas, enquanto jantavam. Melhor que prestar a atenção nas broncas ocasionais, era olhar àquela sala, mirar as velas acesas nos lustres, estrelas no céu interno da casa, refletindo na cristaleira, repleta de taças, copos e aparelhos de chá, protegidos por portas reveladoras em vidro transparente. Em um canto, achava-se uma pequena mesa, suportando o peso de um vaso de porcelana, aparentemente valioso, porém ele chamou contraditoriamente a atenção para uma das paredes a qual a mesa se recostava. Nela havia um grande quadro, emoldurado em madeira fina, retratando a pintura de uma mulher vestida elegantemente, ostentando belas joias, com traços reconhecíveis e familiares: cabelos escuros e a herança da família, os típicos olhos verdes, num rosto pálido, mesmo viva em uma pintura há muito feita. Um retrato da falecida tia, que por essa noite e as próximas, não faria suas refeições nessa sala de jantar, onde, com certeza, comia solitariamente todos os dias.

     Uma serva retirava travessas e servia bebida em seus copos, periodicamente. Antes que Rute terminasse de discursar suas repreensões, Ric se levantou, provocando um ruído baixo da cadeira e caminhou até a mãe, enquanto falava vagamente:

     - Sim, minha mãe, eu compreendi. Estou um pouco cansado. - Antes de obter respostas, inclinou-se e depositou um beijo em sua bochecha. - Boas noites! - Retirou-se, ouvindo sua mãe lhe desejar o mesmo, entendendo que seria desperdício tentar fazê-lo ouvir e entender os seus conselhos, por hora.

     Passando pelos corredores, lembrou que haviam muitos quartos naquela casa, tantos que lhes foram oferecidos, a ele e sua mãe, qualquer que lhes agradasse. Em respeito à falecida, os aposentos principais foram conservados trancados e intocados, até que o luto cessasse. O rapaz seguiu para o que escolheu, o último, no fim do corredor, a varanda favorecia à visão com vários ângulos da paisagem. Antes que pusesse o pé ao primeiro degrau, ouviu um som estranho, que o paralisou imediatamente: o som de algo metálico, arrastando-se no piso, de forma lenta e controlada, a pouca iluminação do corredor o impedia de ver imediatamente o que provocava este ruído. Isso o fez pensar em uma das histórias que ouvira na infância, falando sobre fantasmas que atacavam os vivos, mortos retornados para levar os que respiravam ao sufoco infindo, arrastando suas correntes lentamente no chão, o aviso de sua chegada.

     Esses barulhos vinham da porta de entrada, que deveria estar trancada a estas horas. Virando-se, marchou para o início da sala, a coragem e destemor não eram tão próximas de Ric, porém, no momento mais apropriado, resolveram fazer-lhe uma visita, percorrendo cada veia de seu corpo, deixando-o com a adrenalina perturbando sua frequência cardíaca, encheu-se de determinação e logo percebeu que a porta estava fechada, embora ainda ouvisse o metal rastejante. A maçaneta era pomposa e muito bonita, estava gelada ao toque de sua mão, girou a chave dourada e tocou novamente a maçaneta, ao pressioná-la para baixo, logo cedeu, abrindo-lhe passagem para verificar quem ou o quê causava aquela desordem.

   Do lado de fora da casa, a noite estava escura e gélida, a lua não iluminava o suficiente e o poste em frente, deveria estar aceso, todavia permanecia na escuridão, provocando penumbra ao derredor. Deslocando-se para o outro lado da fronteira do umbral, Ric saiu finalmente para fora, passeando com o olhar pelo lugar, tentando localizar a fonte daquele som. Avançando mais alguns passos, não notou que o metal vinha em sua direção, quando tardiamente percebeu que estava nas suas costas, sobressaltou-se, receoso. Girando nos calcanhares, viu à sua frente o que não lhe passara na mente em ver: um homem alto, segurando materiais de jardinagem em suas mãos. Quando este aproximou-se da luz que o interior da casa oferecia, Ric o viu melhor. Não tinha muito mais do que a sua própria idade, com as mãos ocupadas, não conseguia carregar a pá, presa em seu braço, arrastando no chão, quando andou, seu receio e os pensamentos sobre histórias antigas, se dissiparam. Seu semblante relaxou e sua postura se tornou menos tensa.

A Emissária da MorteOnde histórias criam vida. Descubra agora