NARRADOR

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Michael Clifford nunca foi uma criança comum. Seus pais pensavam que ele seria um prodígio. Com seis anos, já lia os grossos livros da biblioteca da cidade que nem mesmo Daryl já havia cogitado ler. Ele lia e lia, mas nunca parecia saciar seu desejo. Era como um solitário caminhando pelo deserto com uma quantidade escassa de água. Ele tocava e tocava instrumentos, mas nunca encontrava a melodia perfeita. Michael nunca havia conseguido encontrar a si mesmo.

Numa tarde, anos depois, o menino de cabelos dourados bagunçados e bochechas gordinhas, ergueu os olhos de um grande livro e observou o rosto de seu pai. Não só seus traços parecidos lhe chamavam a atenção como o fato de que o progenitor possuía uma paciência invejável – ninguém aguentaria passar horas numa biblioteca ao lado de um possível-garoto-prodígio, mesmo que este fosse seu filho.

– Papai, por que não vai embora? – a criança lhe questionava calmamente, entrelaçando seus pequenos dedinhos uns nos outros sobre a mesa à frente e encarando o pai da mesma forma que um advogado encararia seu cliente culpado. – Sou um caso perdido.

Até então, o pai não tinha conhecimento do tamanho da inteligência de seu menino. Michael, mesmo tendo menos do que nove anos, já havia tomado consciência do que era: um caso perdido. Mas ele não levava em consideração que, enquanto os outros de sua idade comiam a terra dos vasos de flor da escolinha, ele lia livros e entendia a maior parte deles.

Michael parou de frequentar a biblioteca depois disso. Ele não se lembrava do por que. Michael não se lembrava de que havia explicado ao pai os motivos de pensar que era um caso perdido. Não se lembrava de ter dito que somente lendo livros de psicologia – e Deus sabe por que um garoto de oito anos leria livros de psicologia – ele havia conseguido se encontrar. Tudo o que Michael queria era encontrar um personagem como ele para que enfim pudesse se sentir incluído e, segundo o próprio, aquilo havia acontecido.

Foi no mesmo ano em que Michael começou a ter problemas na escola. Para os pais, o garoto era brilhante – e, de fato, Michael tinha uma mente brilhante, apenas não conseguia usá-la para as coisas certas. Para os professores, Michael era um garotinho preguiçoso que não fazia nada além de rabiscar as paredes com giz de cera ao invés do sulfite e que gritava quando era chamado a atenção. Para os colegas, Michael era um retardado. Para ele mesmo, um caso perdido.

Nenhuma daquelas personalidades parecia condizer com a personalidade do Michael que os pais conheciam. Quer dizer, o filho era diferente, mas diferente quer dizer bom, certo? Michael tinha de ser um diferente bom, pois, do contrário, ele passava a ser anormal – e nenhum pai gosta de um filho anormal.

Quando Michael tentou bater nos filhos dos vizinhos com paus e pedras após as crianças terem se esquecido dele numa brincadeira de esconde-esconde, Daryl e Karen abriram seus olhos para o que o filho poderia ser.

É preciso que o estrago seja feito para que as pessoas percebam que precisam tomar providências – neste caso, "estrago" queria dizer três garotos levando pedradas pelo corpo magricela.

Na verdade, crianças podem ser realmente cruéis quando não gostam de alguém. Michael era um garoto estranho e sem amigos que não falava com ninguém além de consigo mesmo. Falar sozinho, mesmo aos oito ou nove anos, não significava boa coisa aos olhos e ouvidos alheios de criancinhas que não sabiam o que era bullying mas já o praticavam, mesmo quando Michael alegava que estava falando com seu melhor amigo Luke.

Michael adorava este nome. Luke. Gostava de dizê-lo em voz alta. Ele não sabia que seu melhor amigo era, na verdade, fruto de sua imaginação fértil. Porém, ao conhecer Luke Hemmings, o único que tivera coragem de se aproximar do estranho Clifford, aos doze anos, Michael tivera a certeza de que aquele Luke era muito real.

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