Capítulo Sete

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Capítulo 7

"Se tu vens, por exemplo, às quatro da tarde, desde às três eu começo a sorrir."

Jaqueline

Velei seu sono inquieto por dois dias inteiros. Meus sentimentos eram conflitantes, tinha hora que eu queria me deitar ao seu lado e fazer cafuné em sua cabeça, noutra hora queria bater nele até despertá-lo. Como ele podia ser tão inconsequente?

Resolvi sair para espairecer um pouco, não podia me deixar influenciar por algum julgamento precipitado. Eu teria uma conversinha com ele, não poderia permanecer naquela situação se ele continuasse sendo desleal comigo, omitindo informações.

Com o endereço da família em mãos, me enchi de coragem e fui procurá-los, com a desculpa de ser uma agente de saúde. A residência ficava no extremo leste da cidade, em um bairro muito longe e carente. Pedi ao motorista da mansão para me deixar um pouco distante, para não levantar suspeitas; ele fora colocado à minha disposição pelo senhor Leônidas. Mesmo com meus protestos, ele alegou que, devido à fase ruim que a família estava passando por todas as ameaças, ficaria mais tranquilo em dar certa segurança para eu me deslocar. O Senhor Leônidas me tratava como se eu realmente fosse sua filha, eu ficava até receosa de aceitar seus cuidados para comigo, não gostava de tanta benevolência por parte do patrão de minha mãe, tinha plena consciência de qual era meu lugar naquela casa.

Coloquei o jaleco e o crachá da faculdade virado, escondendo meu nome, para dar mais veracidade à minha encenação. Ao bater na porta e me apresentar dizendo que era uma agente de saúde, a mãe, que descobri se chamar Rose, não questionou muita coisa, pareceu aliviada ao ver alguém disposto a ajudá-la e já me colocou dentro de sua casa sem rodeios. Fiquei até constrangida por tanta receptividade, uma vez que estava forjando uma situação.

Ela me levou até o pequeno quarto que continha uma cama de casal e um beliche ao canto. Na parte de cima, um rapaz escutava algo em seu fone de ouvido, fingindo não me ver chegar; na parte de baixo, o garoto que vi no dia de todo o ocorrido estava encolhido, gemendo embaixo de cobertas, mesmo com o calor que fazia naquela época do ano. Aproximei-me dele e coloquei minha mão sobre sua testa, notando que ele estava com febre.

— Há quanto tempo ele está assim? — perguntei, muito preocupada com o estado da criança.

— Já está assim há três dias. Levei ao posto aqui do bairro, mas eles me mandaram para casa, dizendo que se trata de mais uma virose.

— Virose? E o que receitaram para ele?

— Somente hidratação e um remédio para baixar a febre. Tentei explicar que ele está sempre assim... Faz dois anos que vivemos atrás de um tratamento, e nada!

— Dois anos? O que ele sente?

— Fraqueza nas pernas, dores pelo corpo e febre. Na minha cidade, chegaram a desenganar meu menino, por isso viemos aqui para Sun Paulo atrás de tratamento, mas já faz oito meses que estou na fila do posto esperando, enquanto ele sofre.

— Não se preocupe, iremos descobrir o que ele tem, mas a senhora precisa confiar em mim.

— Claro, foi Deus quem mandou a senhorita aqui. Hoje eu ia com uma cumadre atrás de uma cirurgia espiritual, porque já não sabia mais onde procurar ajuda.

— Podemos levá-lo ao hospital se a senhora concordar.

— Mas como iremos levá-lo se ele num se aguenta em pé?

— Chamaremos um táxi.

— Eu não posso pagar. Além do mais, eles não entram aqui no bairro, por medo de assalto.

Amor Abstrato - DEGUSTAÇÃOOnde histórias criam vida. Descubra agora