Capítulo Nove

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"Eu não preciso de ti. Tu não precisas de mim.

Mas, se tu me cativares, e se eu te cativar, ambos precisaremos um do outro."

Jaqueline

Queria um buraco para me enfiar. Como pude ser tão relapsa? Em minha empolgação, acabei ultrapassando uma regra muito importante na relação fisioterapeuta-paciente. E não digo pelo fato de eu não ter percebido a reação dele ao meu toque, e sim das reações que isso despertou em mim.

Meu cérebro travou uma luta entre o desejo e o dever. Por um momento, enquanto tentava lidar com o embaraço da situação, olhei para ele como um homem lindo, atraente, e me perdi. Desde que começamos com os diversos tratamentos junto à equipe médica, Léo vinha, cada dia mais, recuperando sua forma física. O corpo magro e flácido pós-acidente voltava a ser moldado por músculos, e por muitas vezes quando o encontrava despido, eu fingia não olhar para seu abdômen definido ou para seus braços que estavam ficando muito fortes. Léo passou a transferir seus esforços para se locomover para a parte superior do tronco conforme avançávamos com os procedimentos de fortalecimento. Já não havia muitos empecilhos para ele, eu não precisava mais levantá-lo, virá-lo ou fazer qualquer outro esforço, todas essas coisas ele já fazia sozinho. Quase tudo estava se resolvendo bem, exceto a parte psicológica, que por muitos momentos o abatia com grande força.

Eu fazia o possível, junto às terapeutas, para não deixá-lo afundar na depressão pela culpa que sentia e também pelo medo do que o futuro lhe reservava, mas era impossível evitar a apatia sempre que uma reportagem surgia ou a cada visita de seus advogados ou investigadores. Naqueles dias, nada o animava. Porém ele não queria mais ficar sozinho nesses momentos, passou a requisitar minha presença, tornando nossa proximidade maior no decorrer dos meses.

Hoje, antes de irmos ao hospital de traumas iniciar os tratamentos com as barras, eu fui visitar Davi, que finalmente teve alta após um longo período hospitalizado. Descobriram que sua doença se tratava de artrite idiopática juvenil, o que requeria um tratamento extenso e incessante. Prontamente me ofereci para iniciar as sessões de fisioterapia com ele. Rose nem desconfiou quando eu disse que era fisioterapeuta e não enfermeira do posto, sua gratidão era tão grande que ela nem questionava nada, apenas aceitava minha ajuda de bom grado.

Rose, em momento nenhum, aceitou algum valor em dinheiro, mesmo com toda a dificuldade que passava. Então comprei todos os remédios, alegando ter pego na farmácia do posto, e ainda abasteci de forma generosa sua casa, com todos os suprimentos de mercado. As contas atrasadas também foram pagas em segredo, por Léo, permitindo que ela tivesse um mínimo de sossego quando retornasse para casa.

Quando vi Davi, ele estava com uma aparência consideravelmente melhor e esboçou um grande sorriso ao me ver, fazendo meu coração transbordar de alegria.

— Obrigada, dona Jaque.

— Não há de que, Davi, o empenho é todo seu.

— Não, a senhora é um anjo que veio para me ajudar. E agora posso sonhar novamente em jogar bola.

— Você gosta de futebol?

— Sim, e serei goleiro. A senhora vai ver quando eu agarrar um monte de bolas lá no meu timão.

— Ah... Já consegui entender qual é o seu time.

— É claro, né, tia? É o melhor!

— Estou muito feliz por vê-lo tão animado — digo, me dirigindo a Rose, que assiste à animação do filho com os olhos lacrimejantes.

Amor Abstrato - DEGUSTAÇÃOOnde histórias criam vida. Descubra agora