O único lugar em casa onde posso ficar sozinha de verdade, sem ninguém para atrapalhar, é em cima desta árvore. Meu lugar mágico. Uma quaresmeira bem grande, facinha de subir e com vários lugares para ficar.
Sempre que estou muito triste, muito feliz, quando quero ler, pensar, sonhar acordada ou não fazer nada de nada, venho para cá. É onde me vêm as ideias mais legais. De uns tempos pra cá, dei pra gostar de escrever:
Tudo é noite. A hora se aproxima, nada pode nos deter. Sob a lua triste esperamos em silêncio. Piero me encara, o olhar ardente:
- Lembre-se, eu sempre te amei.
Selamos esse pacto com um beijo, quando ouvimos tiros: fomos descobertos!
Ele salta como um tigre, disparando sua metralhadora.Corremos destemidos; podem ser muitos, mas nós temos o poder da imaginação, a juventude ardente.
Piero derruba dois, três, cinco, mas, quando a batalha já parece ganha, é atingido e tomba lentamente, negros cabelos ao luar. Vejo ao longe seu algoz; com um tiro certeiro arrebento seu coração covarde. Corro entre cadáveres até chegar a quem tanto amei.Beijo seus lábios manchados de sangue. Lágrimas escorrem pelo meu rosto e a chuva cai. Adeus, adeus, comandante Piero. Lutando pela liberdade, num sonho de juventude e paixão, você se foi como uma chama ardente. Sigo só, rumo ao horizonte, sem mais lágrimas, apenas...
– MARIAAA!!!
A voz da mamãe tem o incrível poder de me trazer para o chão, por mais alto que eu esteja voando.
– Desce daí, menina! Vem me ajudar.
Estava na garagem, no meio de uma grande bagunça de caixas, caixotes e papelada pelo chão.
– Ué? Não foi trabalhar?
– Não. Ainda bem que o Jorge entende. Precisamos queimar esses papéis do seu tio.
– Por quê?
– A gente não tem certeza mas, pelo que seu avô ficou sabendo, Vinícius pode estar sendo procurado.
– Vai queimar tudo?
– Não. Separei muita coisa. Os poemas e outras coisas que ele escreve estão nesta caixa, vou achar um lugar para esconder. Mas ele largou o carro aí cheio de panfletos, uma papelada comprometedora que é melhor não ter em casa.
– A polícia pode vir?
– Não sei, mas... melhor não facilitar.
Lembrei de uma cena que vi uma vez, num filme de nazistas. Sentia medo, mas também um gostinho de aventura
– Pode ir levando estes para fora.
Colocamos os papéis na churrasqueira. Mamãe despejou álcool e acendeu. Ficamos ali, lado a lado, jogando folhas e mais folhas no fogo, olhando as frases que queimavam. Uma era estranha: debaixo da foto de um homem jogado na sarjeta, a legenda dizia:
"SEJA MARGINAL, SEJA HEROI"
– Me sinto mal de fazer isso, filha. Mas não tem jeito.
Ficou quieta. A fumaça ardia nos olhos. Esquisito é que eu estava gostando de estar ali com ela, calor no rosto, olhando o fogo na tarde. E a pergunta saiu.
– Mãe, tem uma coisa que não entendo. Esse negócio de beijo na boca.
Embora parecesse maluco, foi bom. Ela estava precisando pensar em qualquer outra coisa.
– Ué, pensei que você já soubesse. Nós conversamos. Quando as pessoas são adultas, se gostam, beijam na boca. Depois casam, tem filhos...
– Não é nada disso de filhos que eu quero saber. Só de beijo. As meninas dizem que tem que pôr a língua... Que não pode morder... Como é que aprende?
Ela riu.
– Você está namorando, Maria?
– Eu não.
– Ah, filha, não sei. Essas coisas... depende. Quando você crescer mais um pouco, vai gostar de alguém, namorar. Aí, bom, acho que é uma coisa natural, sei lá. Meu primeiro beijo foi com o seu pai. Eu era tão boba... casei sem ter experimentado nem beijar outro. Ainda bem que com você não precisa mais ser assim.
– E depois?
– ...??
– Depois que você e o papai se separaram, já beijou alguém?
Nunca tinha visto mamãe tão sem graça. Ficou vermelha, roxa e azul.
– Bom... – sorriu – No começo, não, mas... outro dia, eu...
Bem nessa hora catei um livro que estava na caixa e taquei no fogo. Na capa dizia: não sei quê do Partido Comunista.
– Ô, Maria! O livro não!
Enfiou a mão no fogo e pegou o livrinho, já meio chamuscado
– Chega a ser pecado, queimar um livro.
– Mas olha que é comunista, hein?
– Não faz mal. Vamos por numa caixa junto com os outros, bem no fundo da garagem. Vão ficar seguros, pode acreditar.
No meio dos papéis, a foto do tal do Che. Que homem lindo! Mais que um artista de novela.
– Mãe, esta foto o tio me deu. Posso guardar?
– Não.
– Ah, vá! Eu queria! A gente esconde com os livros.
– Melhor não, Maria.
E o pobre do Che teve de queimar num foguinho esverdeado. A legenda dizia: "É preciso endurecer sem perder a ternura", e fiquei pensando que devia ser uma coisa meio complicada, tipo enraivecer sem perder a paciência. Vida doida!
Arrumamos os livros e uns poemas do tio no fundo do antigo berço do Caco, debaixo da máquina de costura. Quando íamos saindo, mamãe bateu a mão na cabeça.
– Quase ia me esquecendo de olhar no porta–malas!
Levantou a tampa da frente do fusca e espiou, mexendo lá dentro. Ouvi um barulho metálico, mas quando cheguei para espiar – BANG! – ela bateu o capô bem depressa. Estava pálida.
– Que foi?... Mãe? Ô mãe! O que tem aí?
– Nada... Nada não, Maria, só... ferramentas.
E trancou o carro.
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O SOL NÃO ESPERA
Teen FictionO ano é 1973. Maria está prestes a completar 13 anos e sua vida parece ter virado de ponta-cabeça, num redemoinho. Não bastasse estar perplexa com as atividades misteriosas de seu tio, ela vai conhecer Luca, um novo menino que acaba de mudar para a...