Apesar de tudo, ontem voltei para a cama e tive um sonho incrível. Descobria o jeito certo de mexer os braços e voar. Por sobre o bairro, toda a cidade, o mundo lá em baixo pequenininho. Flutuando, planando, mergulhando. Acordei com o barulho do Caco se vestindo e enchendo os bolsos do macacão com a coisarada que ele carrega. Ah, não, cedo demais. Fechei os olhos com força mas não consegui voltar pro sonho.
Tio Vina nem desceu. Vovô já estava fumando, xicrinha de café preto na mão, escondido atrás do jornal. Mamãe, de cara amassada e os olhos inchados de quem chorou, tentava agir como se nada estivesse acontecendo. É o jeito dela enfrentar as coisas ruins e às vezes até prefiro que seja assim.
– Vai, Carlinhos, toma esse leite de uma vez! Como é que é? Ainda de pijama? Vamos nos arrumando rapidinho que já já vou levar vocês para o clube.
– Mas eu pensei...
– Pensou o que, filha? Nas horas difíceis, o melhor que a gente faz é ir tentando levar vida normal. Ainda mais vocês, crianças. Caco, o leite! Está um dia lindo de sol, vão ficar trancados dentro de casa? Sofrendo pelos problemas dos adultos? Faz até mal para a saúde. O uniforme de bandeirante está passadinho no meu quarto, vai perder a reunião? Ô, Carlinhos, vira esse leite e não esquece o calção de novo! Depressa, gente, que hoje é o meu dia de pegar a Cléo e a Pati!
Era uma desculpa para se livrar de nós, mas confesso que gostei. Esse negócio de revolução pode até ser bonito mas como cansa a cabeça da gente! Melhor é ainda ser considerada criança e ter como única obrigação, num sábado desses, aproveitar o dia e o sol.
Valeu a pena. Aquelas coisas de sempre, tão banais que a gente chega a esquecer como são boas. Só a reunião de bandeirantes foi mais ou menos. Acho que estou passando da idade. Mas a Cléo continua empolgada. As coisas mudam. Ou quem mudou fui eu?
No fim da tarde passamos no campinho. Nesse horário sempre tem um bando de meninos jogando bola. Ficamos na arquibancada batendo papo até que alguma mãe venha buscar. Pati falava sem parar sobre uma festa que vai ter no clube, sábado; que vai ter isso e aquilo, a roupa que vai usar, o sapato... Não podia perder a chance de nos cutucar.
– Pena que seja só para maiores de catorze anos. Vocês não tem idade para vir.
– E você? Tem, por acaso?
– Não, mas quase. E "por acaso" é a minha mãe quem está organizando a festa. E ela não vê problema nenhum em me trazer, tá?
Droga. Os adultos acham lindo eu estar um ano adiantada na escola. Que belezinha, doze anos na sétima! Chato é aguentar a Pati que me trata feito criança. Eu não estava nem pensando na tal festa, mas comecei a ficar morrendo de vontade de ir. Nem que fosse só pra mostrar pra ela.
Fui sentar meio longe. Cléo deitou na arquibancada ao meu lado, puxando o chiclete para fora da boca. O sol estava começando a baixar e um ventinho refrescava o calor do dia. De repente...
– MA–RI–AAA!
Procurei com o olhar quem me chamava, sem achar.
– Ei! Ciao, Rossa!
Surpresa! Não é que o Luca já está enturmado em todos os lugares onde vou? Jogando no time do Tom. Parou um instante, sorrindo com aquele jeito desafiador dele.
– Ciao, Luca!
E a Cléo:
– Você vai embora? Pra quem está dando tchau?
– Estou falando italiano. Tchau quer dizer oi. Escreve c-i-a-o.
– Ué? E tchau, como se diz?
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O SOL NÃO ESPERA
أدب المراهقينO ano é 1973. Maria está prestes a completar 13 anos e sua vida parece ter virado de ponta-cabeça, num redemoinho. Não bastasse estar perplexa com as atividades misteriosas de seu tio, ela vai conhecer Luca, um novo menino que acaba de mudar para a...