24/11, sexta-feira

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Quando eu era pequena, tudo parecia tão fácil. Deitava cedo, dormia feito anjo, acordava alegre. Mas de um tempo para cá perdi o sono. É encostar a cabeça no travesseiro e começar a pensar as coisas mais malucas. Levantar pela manhã virou uma tortura. Como hoje: cheguei à escola atrasada e zonza. Nem podia lembrar direito da briga até encontrar a Pati, com cara de quem bebeu vinagre. Mamãe pode dizer o que quiser, acho difícil perdoar. Mas estávamos umas santas. Tivemos prova de Matemática e fui bem mal.

Voltei de mau humor. E como ando desligada! Tinha largado a bicicleta no jardim desde ontem. Toda úmida. Entrei pela garagem e fiquei olhando o fusca vermelho do Tio Vina, cheio de papéis, pastas e caixas. Estranho. Na cozinha dei de cara com mamãe, o ar sério e preocupado, olhando uma panela que fervia no fogão. Dentro, o estojinho de seringas de injeção. Só de ver, meu estômago dava pulinhos.

– Por favor, Maria, faça silêncio. O Vinícius apareceu, graças a Deus. Mas não está nada bem.

– Cadê ele? O que aconteceu?

Ela deu aquele suspiro fundo.

– Calma. Já vi que não adianta tentar esconder nada de você. Não sei se vai gostar de ver seu tio, agora. Bateram muito nele. O médico já veio, disse que vai ficar tudo bem. Logo mais tenho de aplicar um antibiótico. Mas ele também está muito triste. Deprimido. Acho que isso vai ser o mais difícil de sarar. Não quero que você se assuste.

Senti um gelo na barriga, como daquela vez que o Max foi atropelado na avenida.

– Quero ver. É meu padrinho, né?

– Então vá. Ele está no seu quarto. Até a gente resolver para onde vai, você fica com o Carlinhos. Bate na porta para ver se está acordado.

Nem reclamei. Nessas horas a gente não consegue achar ruim nem ter de ficar no quarto do irmão. Bati, a mão tremendo. A voz fraca e rouca dizendo "entra" me deu medo, mas o pior foi ter de procurar o tio tão bonito e alegre naquele homem muito magro, olheiras escuras, sentado curvo na cama, caderno na mão. Tinha um curativo na cabeça e a boca meio inchada do lado. Várias unhas estavam pretas, como a minha quando apertei o dedo na porta e doeu tanto.

– Nossa, tio, parece que você foi atropelado!

Disse e logo percebi o fora que tinha dado, encabulando ainda mais. Ele colocou o caderno sobre a cama devagar e deu uma risada estranha, que parecia arranhar a garganta.

– É, Rebelião. Fui atropelado, sim. Pela ditadura. A farsa negra!

Tio Vina tem essa mania maluca de me chamar de Rebelião, que, segundo ele, é o que meu nome quer dizer. Foi ele quem escolheu Maria. Me deu um abraço fraco e um beijo. Tudo nele parecia triste. Até os sapatos, muito velhos e sujos, com os calcanhares amassados, encostados junto da cama. Quem sabe se eu lembrasse de alguma coisa divertida ele se sentiria melhor.

– Sabe, quando você estava sumido, fiquei me lembrando daquele churrasco em que nos levou. Estava bêbado e subiu na mesa pra cantar Guantanamera. Depois entrou na lagoa com roupa e tudo. Faz um tempão, lembra? Na chácara da Aidê.

Ele abaixou a cabeça, apoiando-a nas mãos.

– Aidê... Ela está morta, Maria.

– Tio, desculpa! Só digo besteira. Estava tentando falar de alguma coisa alegre.

Ele me olhou fixo, testa enrugada. Com uma das mãos segurou meu queixo.

– Não. Você não tem culpa de nada. Desculpe a mim. Por tudo. Pelo que ainda não fiz. Mas é por isso que eu luto, entende? Sabe que estou na luta, não?

O SOL NÃO ESPERAOnde histórias criam vida. Descubra agora