O cenário lá fora é de grande ajuda. O sol forte e brilhante começa a agir sobre o orvalho ao chão mostrando seu poder de mutação. Esta enorme bola de fogo que há milênios aquece ao seu redor e faz parte da vida e das transformações de muita gente. Sinto que seu toque me faz sentir vivo, capaz e até mesmo feliz. Este que iluminará o meu dia poderá ser uma grande companhia em momentos difíceis. Lembro de ontem quando a sua frente estavam nuvens carregadas e pesadas prontas para descarregar sobre todos uma imensidão de lágrimas, mas que mesmo assim não faziam este sol desistir de cumprir seu papel.
Fito pessoas com suas pastas, com suas cabeças baixas e expressão de preocupação indo em direção ao ponto de ônibus, ou pessoas passando com seus carros, todos sem a vontade de ali estar. Todos esperando ter mais. Achando estarem fazendo o que tem de ser feito e por isso cumprindo seus papéis. O questionamento é vago, tão vago que para eles parece até um ato de loucura, uma recaída de si, uma tentativa de desistir. O questionamento que hoje parece ser tão sábio é visto por tantos como irresponsabilidade ou fraqueza.
Aqueles minutos apreciando rostos cansados me fez ver o quanto eu não precisava daquilo. O quanto aquilo tudo foi algo não escolhido. O quanto foi automático e consentido por já ter acontecido. O quanto acreditar que tudo isso é necessário torna-se realmente necessário. O quanto criamos com nossos medos e o quanto também destruímos com eles. O medo de faltar e o de exceder, o de amar e depois perder, o medo de perder e por isso sofrer. O medo de se molhar e de adoecer, de não olhar e se perder, de conversar e não entender, de se expressar e ninguém ver, medo de tentar e não conseguir alcançar. Esse medo que me ajudou hoje estar fazendo algo por mim e que pode vir a atrapalhar não deixando ver a real situação das coisas. Ele que pode estar trocando o sorriso de uma pessoa e mostrando ironia, que pode estar trocando um elogio recebido e transformá-lo em uma crítica e que pode estar colocando o cansaço no rosto de pessoas apenas concentradas indo aos seus trabalhos fazer o que tanto sentem prazer. Toda esta dúvida me deixa assustado e penso ser uma boa hora de relaxar junto à praia, duas quadras à frente. Junto ao sol e ao oceano.
Estar frente ao mar, relaxa. Lembro da minha adolescência quando me permitia ter tempo para estar ali. Sentir o calor do sol e o frescor do mar junto dos amigos e dos sorrisos tão alegres simplesmente por ali estarem. Boas recordações. Avisto barcos distantes, tão distantes como algumas ilhas estão. Na areia, uma fina película de água que torna a praia algo mais brilhante e refresca os pés de alguns que estão a caminhar. Com a mente mais calma frente a tudo aquilo, as lembranças daquele sonho que tive esta noite e que muito me fez bem, ressurgem. Um sonho intrigante com um clima de suspense, mas que não me deixou desconfortável.
Estava eu, em um lugar um pouco escuro, como quando as cortinas impedem o sol de entrar. A limpeza do local não era das piores, mas percebia-se que não era uma prioridade. Andei pelos poucos cômodos e percebi estar em uma morada. Nas paredes havia algumas pinturas, todas de mulheres. Muitos livros havia em um dos cômodos onde no canto uma antiga vitrola e poucos discos também estavam. Aproximei-me de uma mesa com muitos papéis. Eram poemas, anotações, cartas, memórias. Lembro de ter ficado surpreso em encontrar tantas coisas escritas naquele lugar quase triste pela falta de luz.
Olhei novamente ao meu redor tentando descobrir onde estava e ao voltar meu olhar aos escritos encontro uma folha com minha letra que dizia mais ou menos assim:
"Não tenhas medo de viver o agora sem carregar
o peso do ontem e a incerteza do amanhã. Faça por..." .Fiquei intrigado por aquele escrito estar com a minha letra sem eu sequer ter pensado aquilo.
Além disso, porque estava faltando uma continuação? O que aquilo queria dizer? Mas o sonho não acabou. Abri um armário e muitas coisas da minha infância estavam lá. Brinquedos, cheiros, fotos, roupas e com certeza lembranças. Tudo aquilo me fez sentir bem. Lembrei um pouco de como eu era naquela época. Antes mesmo de eu fechar o armário, sinto alguém tocar em meu ombro e acordo. Tranquilo por ter a certeza de ter estado em um lugar amigável. A sensação de real e fantasia misturava-se muito em meu sonho. Como se parte tivesse realmente acontecido e parte tivesse sido criada.
Volto minha atenção à praia sentindo-me muito melhor. Estou mais calmo, em outra frequência. O turbilhão em minha cabeça cessou. Vejo as coisas mais claras. Sem pressa, sem medo, sem a dualidade. Foi como se eu tivesse realmente em um campo de batalha e agora não mais. Coloco um sorriso em meu rosto por perceber que tudo está bem ou que tudo sempre acaba bem. Quando algo não acaba bem é porque simplesmente não acabou.
Vou próximo ao mar para sentir a temperatura da água. Com os tênis nas mãos e a calça dobrada sinto que a água está fria, mas não o bastante para que impedisse de caminhar com os pés nela. Alguns passos e avisto ao longe um garoto em uma bicicleta. Deve ser Léo, um simpático e inteligente menino de aproximados 8 anos.
Agora mais próximo, consigo acenar de modo a ser por ele avistado e reconhecido. Léo pedala ainda mais rápido e ao ficar bem perto, freia sua bicicleta desenhando na areia uma grande faixa com o arrastar de seu pneu traseiro. Esta era uma de suas manobras preferida feita com toda técnica de um garoto de 8 anos.
— Como vai Léo? - pergunto ainda assustado com sua manobra.
— Tudo bem. - responde Léo com sua atenção ainda voltada para a marca de sua última e excelente manobra. E continua dizendo: 4 bicicletas. Acho que minha marca tem o tamanho de 4 bicicletas. Não é o máximo. Ainda ontem passei de 5.
— Mas qual é o seu máximo? Perguntei incentivando-o e demonstrando que 5 já era bastante.
— Ainda não cheguei em meu máximo por isso não sei. Posso dizer que meu máximo é muito e quando eu crescer será muito mais.
Começo a rir com sua curiosa resposta, mas sem desrespeitá-lo. Léo é realmente muito esperto e não iria gostar que duvidassem de suas habilidades e convicções.
— E você, o que faz aqui?
— Estou caminhando.
— Só caminhando?
— Só.
— Pra quê?
— Pra pensar um pouco.
— Ah! Caminhando e pensando.
— Isso Léo. Caminhando e pensando.
— Por que não brincamos?
— Pode ser. De que você sugere?
E assim ficamos um bom tempo conversando e brincando como há tempos não o fazia. Às vezes me pegava tentando saber as horas e ao mesmo tempo tentando viver aquele momento com as preocupações de um menino de 8 anos, porque ali naquele local e naquele momento eu não precisava mais do que isso.
Com o tempo, o sol ficou forte e Léo despediu-se dizendo estar na hora de ir embora. A fome aperta e vou para casa providenciar o que comer.
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Tempestade do eu
General Fiction"Reflita sobre seu caminho e redesenhe se assim for preciso" O personagem desta história sente que é hora de dar um basta no 'deixar rolar' de sua vida e resolve encarar a tempestade de frente para se reencontrar, resgatando sua criança interior e...