É manhã fria de agosto. Não tão fria quanto o inverno passado. Gosto de acordar e, sem abrir os olhos, ficar parado percebendo e tentando adivinhar como são as coisas ao meu redor quando estou dormindo. Ouço pássaros, vento, sinto cheiro da coberta, frio na ponta do nariz, ruído de pessoas na rua e percebo que já é dia. Talvez seja uma boa hora de acordar, mas nunca tenho certeza. Fico imaginando como será se daqui não levantar. Como as coisas funcionarão? A sensação de insubstituível surge. Nessas alturas, minha cabeça começa a pensar cada vez mais rápido e percebo que devo interferir buscando imaginar coisas simples. Este é um exercício que faço para relaxar minha mente. Simples como a vida de um gato doméstico que só agrada quando quer. Como o simples ato de respirar ou de abrir os olhos e enxergar. Simples como mexer os dedos ou caminhar. Esses simples, mas essenciais sentidos que faz nossa vida ser tão. . . como poderia expressar bem isto? Acho que 'simples' seria a palavra correta. Simples ao ponto de não enxergarmos o quanto tudo isso nos é precioso. E então eu agradeço por poder ter e fazer tudo isso. Agradecer a quem? A quem puder ler meus pensamentos. Essa é a resposta. Fico com a sensação que alguém ou algum lugar pode e se alimenta com meu agradecimento.
Então levanto e olho ao redor. O tempo não para e por isso me apreço buscando um referencial que mostre a hora certa. O despertador no chão, inválido, não pode mais cumprir o seu papel e por isso abri a janela para ver o sol que indica ser muito cedo, pois há pouco desgrudou do mar e com ele trouxe uma cor lilás forte que enche os olhos. Aos poucos as lembranças surgem, lembranças de momentos tão agradáveis quanto tempos de infância. Um sonho tão inspirador que me dá coragem de quebrar a rotina e hoje não fazer mais o mesmo do que fiz nos 'ontens'. Hoje será diferente. Cada minuto em que eu estava vendo aquela pintura quase que surreal eram minutos de quebra. Sem quebrar, estava eu, frente ao espelho do banheiro, achando-me mais velho do que tempos atrás. Mais velho e mais acabado. Sentindo-me menos. Pura escolha do meu sentir, do meu eu em relação a mim. Isso pode ser diferente e hoje será.
Olho para o chão a fim de encontrar meu chinelo e no canto junto a umas caixas de papelão e muita poeira encontro minhas luvas que há tempos havia desistido de procurar. Dessas sem dedos, de couro tingido, próprias para guiar motos. Motos que um dia já foram minha paixão. Quantas lembranças isso me trouxe. Lembrei de quando eu ainda sentia-me muito bem. Quando era expandido para a vida. Quando era dono do meu destino, das minhas vontades, das minhas ações. Quando era dono dos meus pensamentos. Bati as luvas na perna a fim de tirar a poeira, e com elas em minhas mãos fui frente aquele mesmo espelho que mostrava alguém que não reconheço mais. Hoje vou brigar com ele. Dizer-lhe que não o quero mais. Que devolva o meu eu real. Que mostre novamente meus sonhos. Que transforme meu 'era' em 'sou'. Que deixe-me ser feliz, caso contrário não estará valendo a pena. Afinal, quem é ele além de uma de minhas criações?
Acendi a luz para ter certeza do que via. Olhos nos olhos, comecei a enfraquecer. A tristeza voltou e por um rápido momento poderia acreditar que era impossível lutar contra. Os olhos começaram a procurar os defeitos. Procuravam novas rugas, manchas, faltas de cabelo. A mente voltava a acreditar que aquela casca que me cobria era o todo. Que aquilo visto era tudo o que tinha para oferecer. Os olhos foram perdendo o brilho, a vontade de mudança que tinha se apagou quase que por completo e meus movimentos já eram voltados ao de sempre. Ao meu rotineiro mundo. Então fui lavar o rosto e num rápido movimento tiro a mão de perto da água impedindo de molhar minhas velhas luvas. Meu catalisador de mudanças. Minha alavanca. Ela que me tirou da cama e incentivou-me a combatê-lo, foi rapidamente vencida por um simples olhar. Mas agora ainda presente, relembro do intuito a que vim aqui e me fortalece para, no mínimo, sair de frente do espelho sem desistir. Sem regredir.
Quem sou eu? Augusto Tropa. Peço desculpas por me apresentar só agora, depois de deixá-lo ouvir minha mente de forma tão íntima e turbulenta. Sou responsável pelo departamento de ouvidoria de um quase falido banco privado que visa apenas o lucro de seus sócios. Meu papel é gerenciar uma equipe ineficiente que me foi imposta e que aparentemente me odeia. Clientes extremamente insatisfeitos que preciso dar atenção 12 horas por dia em 5 dias da semana. Minha facilidade com números não me ajuda nessa função e minha ignorância social faz de mim alguém pouco carismático. A falta de amor próprio permitiu que eu chegasse onde não queria, deixando as circunstâncias me trazerem para o agora. Mas apesar de parecer alguém desinteressante, hoje resolvi mudar e quero sua companhia nessa quebra.
Sinto sede e busco água em um garrafão dentro da geladeira. Toda aquela experiência e rememorações haviam deixado o clima tenso e irritante. Aquela batalha perdida, frente ao espelho, mostrou o quanto ainda devo procurar dentro de mim. Como e onde fui esconder tantas coisas que saem tão intensas? Olho para o relógio sobre a geladeira que aponta 6h42. O dia está só começando.
Ouço barulhos no andar debaixo. Deve ser Homero, um velho solitário que passa dias sem ver a luz do sol. Não me perturbo com a sua presença, mas sim, com o que ele faz de sua vida. Este velho que deve ter quase oitenta anos desistiu de viver e deve estar esperando apenas sua hora chegar. Não recebe cartas, não tem telefone, nem visitas recebe, exceto de um entregador de compras todas as quartas-feiras para deixar-lhe uma caixa. O que será que o levou a desistir? O que o fez crer não ser merecedor de vida? Que caminho ele seguiu que o fez chegar onde está? São perguntas onde as respostas poderão ajudar a entender o seu presente e refletir em meu futuro.
Este velho homem é uma projeção clara do que eu não quero ser. Mas fico me perguntando se quando ele tinha a minha idade, via-se assim em seu futuro. Fico tentando imaginá-lo quando mais jovem, sedento por experiências, cheio de anseios, de vida, de liberdade e de insegurança. Faltando-lhe experiência, mas não a vontade de vivenciá-las. Faltando-lhe certeza, mas não a vontade de buscar respostas. Faltando-lhe um alguém, mas não a coragem de amar. O que fez este menino crescer e tornar-se no que para muitos é apenas o morador do apartamento 12? Um alguém que está ali ocupando espaço.
Tim, um amigo de infância, diz que seu avô lhe contava muitas histórias de Homero e que conhecia o velho de tempos distantes. Homero, segundo ele, era um forte e habilidoso cortador de mármore. Fazia algumas esculturas, mas não gostava muito de seu trabalho. Homero queria ter seu próprio negócio. Sonhava em ter um bar onde amigos pudessem se encontrar, ouvir uma jam, beber bons vinhos e, principalmente, onde Louise pudesse cantar. Claro que não somente Louise, mas principalmente Louise. A bela e suave Louise. Umas das mais encantadoras mulheres de toda a região. Louise era paparicada por homens das quatro direções. Nada a difamava. Talvez o único defeito de Louise fosse não conhecer Homero, o homem que a tinha como única em seus pensamentos. E que sonhava estar perto dela para sempre.
Bom, agora já conhecemos Homero e sabemos no que ele se transformou. Podemos imaginar que o final dessa história não foi nada feliz. Certeza temos de que ele não viveu feliz para sempre ao lado de Louise. Dizem que sequer um dia abriu seu bar. Frustração? Amor não correspondido? Bons motivos para deixar Homero viver como o velho Homero. Mas e o tempo? Não deveria ele estar cumprindo o seu papel e resolvendo tudo isso? Meu pai sempre diz, quando algo dá muito errado e ninguém consegue resolver, só o tempo resolve. Pelo visto, o caso de Homero fugiu à regra. Estou quase aceitando o convite de Tim para um dia irmos conhecer Homero de perto, no entanto não parece ser algo fácil. Homero parece-me duro como pedra. O mármore não deve ter-lhe feito bem.
Uma fruta na mão e já é o suficiente para eu sair de casa. Sem carteira ou celular, sinto-me mais à vontade para continuar minha quebra. Pensar em Homero fez-me sentir mais forte. Não quero voltar a minha 'rotina de mármore' diária que talvez esteja me levando a ser alguém que ocupará espaço em um 'apartamento 12' qualquer.
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Tempestade do eu
General Fiction"Reflita sobre seu caminho e redesenhe se assim for preciso" O personagem desta história sente que é hora de dar um basta no 'deixar rolar' de sua vida e resolve encarar a tempestade de frente para se reencontrar, resgatando sua criança interior e...