A DUQUESA DE NEVE

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– Psiu! – chamou uma voz em meio à escuridão do pátio.

Lisa parou rente às sombras dos muros externos do castelo. A voz vinha detrás dos estábulos e soava familiar.

– O que está fazendo aí? – Lisa sussurrou.

– Também quero me despedir – disse o jovem Peter, deixando seu rosto ser iluminado pelo luar.

– Como sabe...? – Lisa balbuciou, surpresa.

– Me desculpe, Cinzenta. Sabe, você sempre diz que eu sou enxerido, e eu sou enxerido mesmo, então eu observei que Brida e aquele homenzinho estranho dos papéis estavam conversando com você. E pareceu sério. O seu rosto estava preocupado, mas eu não consegui ouvir o que vocês diziam, então imaginei aqui comigo: Peter, meu velho, acho que a Cinzenta está com problemas.

– Você espiou pela fechadura do quarto de Brida?

– Bem, eu estava só passando e vi quando vocês entraram, então pensei: sabe, acho que algo muito sério está acontecendo, pois eu não vou muito com a cara daquele sujeitinho do povoado e...

– Está bem, Peter, está bem.

– Você vai para onde?

– Eu ainda não sei. Vou apenas embora.

– Certo – disse Peter, como se estivesse encaixando as peças de uma investigação em sua cabeça. – Você quer dizer que está cansada de viver aqui, é isso?

– Não. Eu estou fugindo. Minha vida está em perigo.

– Certo – suspirou Peter, dessa vez como se tivesse que se desfazer da outra teoria e começar a pensar em uma nova.

– Tenho que ir. Obrigada por tudo. Aquilo de me acompanhar até o campo e tudo mais, sabe. Não diga a ninguém que me viu.

– Espere. – Peter tirou de dentro do casaco uma faca e apontou na direção de Lisa. – Você não pode ir antes de uma coisa.

Lisa estremeceu.

– Peter, o que é isso?

– Eu peguei da cozinha. Quero que você leve com você. Pode ser útil.

Peter entregou a faca para Lisa e ela a colocou no cordão de seu vestido.

– Obrigada mais uma vez.

– Será que vamos nos ver de novo? – Peter perguntou.

– Eu espero que não – Lisa ponderou.

Peter sorriu e carregou o saco de ração dos cavalos de volta para dentro. Ele ainda deu mais uma olhada para trás, a fim de talvez dar um último aceno, mas Lisa já estava desaparecendo na escuridão entre as árvores.

* * *

Sempre que a rainha Circe tinha dúvidas sobre quais decisões tomar, prostrava-se em frente ao grande espelho emoldurado em mogno no canto de sua alcova. Não havia nada mais sábio do que consultar a si mesma.

Na última meia hora, ela teve de responder a mais de três funcionários diferentes do palácio que sim, os preparativos para a festa deveriam continuar. Quando enfim conseguiu localizar Brida no meio daquela confusão, ordenou que dividisse uma equipe para cuidar dos preparativos fúnebres e outra para receber os convidados.

– Em minhas terras – disse a rainha – era costume festejarmos os funerais com grandes festas. Não imagino que momento mais propício para reunir convidados do que no velório de seu querido rei.

Brida assentiu, de forma a parecer que compreendia a ordem, e até, de certa forma, concordava com aquele gesto.

– Vou me arrumar e já desço – Circe avisou, e Brida seguiu seu rumo.

A rainha vestiu seu mais belo vestido e iniciou um lento ritual de pentear os cabelos, de frente para o espelho de vidro negro da altura de uma pessoa.

O rosto que se via através da superfície também era Circe, mas ninguém poderia dizer exatamente se era outra Circe ou uma Circe com algo diferente da Circe parada diante dela – talvez fosse apenas uma sombra daquela, com uma expressão mais maléfica, e, de certa forma, até mais bonita.

– Esta é a noite da minha glória – disse ela, diante de sua imagem.

Sua face refletida no vidro negro pareceu se contorcer amargamente.

– Vá com calma, minha cara – retrucou a Circe do espelho. – O trono não será seu uma vez que os filhos de Próspero cumpram sua missão.

A rainha de cá sentiu a dor da verdade corroer seu coração bem lá no fundo.

– O que devo fazer?

– Esta é a pergunta errada – disse a Circe do espelho. – A pergunta certa é o que posso fazer.

– Não posso matá-los. Não todos eles de uma vez.

– Veja, esta é a sua fraqueza. Sempre pensa na morte como único remédio.

– Preciso ter o herdeiro nas minhas mãos. E se não posso esmagá-lo, então moverei suas cordinhas do meu próprio jeito.

– Você está se esquecendo da menina.

– O que tem a menina?

– Ela também é filha do rei.

– Ela é apenas uma das suas bastardas.

– Então por que Próspero a chamou em particular com o notário?

– Sim, essa é uma boa questão. Eu deveria tê-lo feito dizer, antes de...

– Errado de novo. Lembre-se, você não o matou. Não ainda.

Algo se iluminou em sua face. Levantou-se da cadeira e foi até o outro lado do quarto, onde uma comprida gaiola enjaulava meia dúzia de lindos pássaros canoros. Retirou o pano escuro de cima e foi fácil capturar um deles, pois dormiam pacificados sobre o poleiro. Escolheu o mais rechonchudo e colorido e fez com que se calasse torcendo seu pescocinho num gesto muito ágil. Depositou-o sobre a bancada e, com a lâmina de uma abridor de cartas, abriu um talho na barriga dele.

– Que os deuses das Terras Geladas me concedam o poder da sabedoria por mais esta noite – ela orou, e então buscou o coração do pássaro com a ponta dos dedos. Em seguida o levou até a boca e o mastigou.

– Não abuse da magia antiga – disse a rainha do outro lado do vidro, limpando o sangue que escorria pelo canto do lábio.

Circe terminou de desembaraçar seus longos cabelos cor de fogo e de prender o último laço de seu corpete quando as empregadas enviadas por Brida começaram a bater na porta.

– Há, neste reino, alguém mais bela do eu? – Circe disse para o espelho uma última vez, antes de mandar as empregadas entrarem.

– Não há ninguém mais bela do vós – respondeu sua própria imagem refletida.

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