O abismo

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Quando acordei, a claridade tornou-se insuportável, mas não sei se poderia chamá-la de luz. Apenas uma fina noite dava o toque do ambiente. Endlich estendeu a mão direita e o portão se abriu, enquanto me segurou com a outra.

Na imensidão do submundo o cheiro é mais forte. O som das vozes gritando é maior. Perto de um rio azul, dois seres horrendos vigiam os portões da morte.

Naraca é o lugar médio do abismo, onde os mortos vão para expiação dos pecados. Diferente do lago de fogo e gelo, tal tormento não é infinito, apesar de perdurar por quase todo o sempre. O karma leva os humanos. Dessa forma, eles sofrem dia e noite com as provações dos rios Signa, Getsi e Kaikkon.

Eu sinto vontade de chorar. Meus cabelos estão sujos. O cheiro de suor se impregnou com o cheiro de sangue. Se é possível ver minha imagem, é de uma pobre indefesa. Mas se estou aqui devo continuar seguindo com o plano, mesmo que as lembranças do meu pai, naquele relento, venham à tona.

— Ora, ora! — Miguel apareceu a minha frente, com suas armaduras de ferro e uma coragem colossal. — Eu não pensei que fosse vê-la tão cedo, garotinha!

Não quero responder e não vou responder. Não há voz em minha boca. Não há delicadeza em meus lábios, nem uma resposta que seja suficiente para me acalmar. Sinto calafrios a cada grito que escuto. Meus olhos estão alucinados. Minha respiração sucumbe ao cheiro de flores queimadas. Caminho sobre o piso ilustre, retirando-me de sua ociosa presença, até chegar em um portão estranho, rodeado de árvores secas e velhas, que mais parecem mortas.

Nesses poucos minutos que estou aqui, sei que é impossível se acostumar com o cheiro do submundo. A fumaça que vem do lago de fogo e gelo sobe até o topo do subterrâneo. Uma espécie de neblina porosa esconde parcialmente minha visão. A cerca de cinquenta pés da entrada, eu vejo Kerolyn dormindo sobre o pescoço de um grande lobo, como se fosse a filha dele. E o lobo tem os dentes mais afiados que canivetes, a pele mais negra do que a noite e as unhas maiores que meus dedos. Ele é a personificação da morte, o responsável por cortar o fio da vida na terra, de interromper os sonhos dos pobres mortais. Ele está vindo até mim, rosnando com seu bafo de besta selvagem, pronto para me atacar. E eu não sei o que vou fazer.

— Acalme-se, Thanatos! — pediu Endlich. — Essa garota... ainda está viva.

— Não! Ela é uma intrusa! Uma intrusa que pode nos matar!

— Meu amigo, eu sei que você tem sede. Porém, das outras vezes que tiramos a vida de Jodie, ela sempre reencarnava e fugia de nós. Dessa vez, é necessário que seja diferente. Deixe que ela complete dezoito anos e torne-se imortal.

A história do submundo é tão antiga quanto a criação do paraíso. Quem viu, viu. Que não viu, peço que não veja. Tantos corredores soturnos. Tantas portas rangendo.

— Jodie — Kerolyn acordou e abriu os olhos. — O que... o que faz aqui?

— Eu não tive escolhas. Essa não é minha casa e nunca vai ser!

— Não mesmo, porque se conhecesse as leis do seu criador, saberia que vivos não podem entrar neste plano.

— Nós duas somos descendentes de Adão e Eva — eu disse. — O meu criador é o mesmo que o seu.

— Bem, disso não tenho certeza. Não acredito em seu deus, nem em qualquer coisa relacionada a ele — respondeu ela.

Endlich interrompeu a menina e me levou para dentro de uma porta, onde havia outras centenas de portas. Nós passamos pelo Reino das Dores, onde as almas ficavam em sofrimento. Perto dos cais, uma estátua de alabastro esculpia o rosto de Hazej. Um rosto de desaprovação, sentado em um trono, segurando a espada de Viryan. Dois rios menores corriam paralelo ao maior e mais cruel, o rio Kaikkon, formando o oceano Garbodhaka. Uma grande ponte de ferro cobria o leito deste oceano, e era a única passagem à residência do governador do submundo. Ao atravessar, os meus pés sangraram, os ferimentos se foram, mas o sangue se prendeu em meus tênis.

Os Segredos da ImortalidadeOnde histórias criam vida. Descubra agora