Essa é a segunda noite seguida que sonho com meu corpo em chamas.
Acordo suada e com o coração brigando para fugir do peito. É horrível, mas é necessário. Abri o notebook para começar a escrever a minha história, pelo menos um rascunho dela, mas estou aqui, tomando café às quatro da manhã, fumando dentro do quarto sem saber se isso é permitido nesse hotel e com uma vontade inexplicável de chorar. E tudo o que sai é esse relato torto, que mais fala de mim do que do objeto da matéria. Mesmo quando eu não me ligava em signo, já sabia que nascer leonina com ascendente em leão não podia dar certo.
A luz do meu quarto deve ser a única acesa nesse hotel. Quando eu cheguei aqui, semana passada, não imaginei que esse lugarzinho pudesse ser tão acolhedor. Na minha gaiatice de menina que quase nunca saiu do quadradinho brasiliense, imaginei um lugar decrépito, caindo aos pedaços. O dono seria um velho sem dentes, me recebendo com uma lamparina. Nessa cidadezinha do interior goiano, imaginei um hotel de madeira, com piso que grita de noite ao toque da mais branda brisa. As paredes ainda conservariam manchas marrons de sangue, marcas óbvias de uma história terrível que acontecera ali.
Uma história como a que eu preciso escrever.
Mas o Hotel Trípoli me deu um tapa na cara, bem servido. Era um hotelzinho novo e muitíssimo bem arrumado. Aquela imagem do hotel de Stephen King foi substituída por lençóis com um cheiro de lavanda delicioso. No dia, cogitei até mesmo cancelar a minha estadia e procurar um lugar pior. Achei que a inspiração para contar essa história de desgraças não viria num lugar onde tudo é tão limpo. Talvez eu estivesse certa.
Pois estou aqui, nessa madrugada morna, sem conseguir uma linha do relato.
Talvez eu devesse tentar concurso. A maldita crise do brasiliense. Pensei que essa bosta não chegaria, mas aflorou na última briga com a mãe, dois dias antes de quando eu resolvi pegar a BR-060 para cair nessa cidadezinha.
Depois de onze dias aqui, parece que fiquei inebriada com a história daquele homem, como quem foge do trabalho a tarde alegando doença mas vai ver um filme no cinema. E, quando sai, fica com aquela sensação de culpa.
Agora, enquanto termino o meu café, fico aqui lutando contra uma ideia. Uma ideia que entrou sem vontade na minha mente, mas lá ficou, alimentou-se de cada palavra que saiu da boca doida daquele homem e agora ocupa um espaço tão grande dentro de mim que parece ter controle sobre meus dedos, que teclam depressa neste notebook. A ideia parecia idiota de tão absurda, mas pulsava viva em meu coração. Tão viva, que faz o sangue correr mais rápido e dilata as pupilas, como quem se apaixona.
Mas se era paixão, era paixão bandida, pois essa ideia... essa hipótese era terrível. E tomou conta de mim, como há muito tempo eu não era tomada. Sem conseguir pronunciá-la em voz alta, eu tive que escrever.
Athos Magno, condenado a 30 anos de cadeia, em 1972, por incendiar três pessoas é um homem inocente.
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O Incendiário
Misterio / SuspensoUma menina chega à uma cidadezinha do interior para encontrar inspiração para sua nova história, mas acaba escutando cada detalhe de um relato terrível: um crime que aconteceu há 30 anos e mudou a vida de todos ali.