Capítulo IX - Recado do Futuro

7 0 0
                                    

O meu rosto gritava para mim, de frente ao espelho, mas eu nada respondi. O que eu fazia numa cidadezinha do interior, fazendo de um hotel minha casa e entrevistando um homem, um ex-detento, sem motivo algum?

Qual a chance de eu estar aqui? O que estou fazendo com a minha vida?

E se algo do que Athos Magno disse fosse real? Narjara Medeiros, sempre pragmática, entrou de cabeça no conto de um velho. Gastei horas, dias da minha vida escutando um relato sem sentido. Viagem no tempo? Um homem que queima as pessoas com um tiro? As minhas expectativas eram altas, mas Athos era só um velho que ficou preso por tempo demais. Da mesma forma, eu estava me prendendo tempo demais em Andronópolis. Essas férias sabáticas têm que chegar ao fim. Era hora de admitir que eu apenas fugia de quem eu realmente era e do meu infalível destino quadrado no quadrado brasiliense. Minha mãe estava certa. Eu quis dar um último tiro antes de assumir que minha vida não ia bem e eu errei o alvo. Era hora de acordar.

Terminei de lavar o rosto. E voltei à mesa. Não queria mesmo mais saber o que o velho tinha para contar. Quando ele disse que me viu, na longe década de 70, resolvi ir ao banheiro para espairecer.

Mas eu volto e Athos não está lá.

Há um envelope sobre a mesa. O objeto está amarelado. É muito antigo. Dentro dele, havia duas cartas impressas. A primeira, também bastante surrada, trazia:

Athos Magno — 1972 d.CEnterrará o corpo de Isaac num raio de 2kmAssumirá a culpa pelas mortes de todos os incendiadosNunca contará nada a ninguémPassará trinta anos presoVoltará para AndronópolisA escritora apareceráConte a verdadeFaça com que ela escreva sua história

A última linha me deixou da temperatura da cerveja sobre a mesa do boteco.

Morra.

Guardei a carta cuidadosamente dentro do envelope. Paguei Vanessa, a dona do bar, e voltei para o hotel. Caminhando a passos rápidos, duas coisas não saíam da minha cabeça. A primeira, era de que o velho havia dito que me viu, que me esperava. A segunda, ainda mais assustadora, mas mais recente, me levou de volta ao primeiro encontro com ele.

"Eu esperava alguém mais velho" ele dissera.

Ele me esperava. Assim como a carta amarelada dentro do envelope tinha confirmado. Na minha ânsia de ser protagonista de tudo, deixei esse pensamento entrar na minha cabeça mais uma vez.

A escritora aparecerá

Chegando no hotel, abro depressa meu notebook para tirar os pensamentos da minha cabeça efervescente e grudá-los na tela fria.

Athos Magno matou Lionel pois amava Laura. Matou a esposa porque ela sabia demais e poderia denunciá-lo. Matou Diolinda por ciúme, pois também estava envolvido. Esse era o homem. Um assassino, um louco. Ficou tão apodrecido e doente por dentro, ruminando tudo isso durante tanto tempo, que esqueceu a verdade. Tudo era uma invenção psicótica de um homem louco. E ele planejou bem. Escreveu uma carta, guardou-a, envelheceu-a, se fez de vítima e acertou as pontas da história. Ele teve tempo pra isso.

Athos foi embora do bar pois sabia que eu iria confrontá-lo. Ele me prendeu e me ludibriou com uma história tão cheia de ganchos e reviravoltas que me senti atraída como alguém que segue uma novela das nove, dia após dia. Religiosamente.

Mas ainda me restava uma questão.

Eu vou escrever essa história?

Será um relato frustrante? Será uma ficção baseada nas mentiras de Athos Magno? Ou, quem sabe, será uma história que salvará milhares de pessoas?

"Falei com a minha amiga. Consegui uma vaga para você."

Não. Chega de brincar de esconde-esconde. Os dias em Andronópolis serviram apenas para me mostrar que "largar tudo e perseguir um sonho" é utopia barata de Facebook. Minha mãe me arranjou um emprego. Se eu esperava um sinal, uma catarse para voltar para a realidade, lá estava.

Fechei o notebook.

Vislumbrei minha vida em Brasília. Pela primeira vez em todos esses dias, senti saudade da minha mãe. Do meu namorado, o qual eu havia ignorado por quase todo esse tempo. Eu estava embalada pelo som do ar condicionado, prestes a dormir, quando sinto o coração pular da boca, pressentindo o pensamento que viria a seguir.

Lembrei que havia outra carta no envelope.

O IncendiárioOnde histórias criam vida. Descubra agora