Enquanto tomava a saideira no bar da Vanessa, as palavras do velho Athos dançavam uma valsa lenta na minha cabeça. Os rascunhos no meu caderninho não me deixavam disfarçar a minha confusão com aquela história.
Athos Magno era um policial que conhecia os Caldeira e a empregada deles, as pessoas envolvidas nos incêndios de 1972. Ele alegava inocência, mas nunca quis defender-se no tribunal. Aceitou sua pena de trinta anos.
Que louco faria isso?
Enquanto eu me preparava para ir embora, Carlos me ligou, despertando-me daqueles devaneios acinzentados. Não atendi. Só então percebi a sequência de mensagens que ele havia me deixado. Eu disse que estava no hotel, que iria tomar um banho, jantar e dormir. Desliguei o celular estranhamente sem culpa. Eu não queria pensar em relacionamentos nessa hora, queria pensar em tudo mais.
No dia seguinte, acordo com a ligação do hotel. Eram oito horas da manhã. Quem te liga às oito da manhã quer reportar uma tragédia ou está prestes a presenciar uma. Que saco. O moço com voz de besta da recepção avisa:
"Athos Magno está aqui, senhora".
Só então percebo que minha mãe também ligou. Respondo com uma mensagem em áudio de qualquer jeito, me visto e vou me encontrar com o assassino inocente.
Athos estava com uma combinação exatamente igual a do dia anterior: camisa florida e bermuda. Ele me recebe com um sorriso miúdo.
"Bom dia, menina."
"Como você sabia em que hotel eu estava?"
"Eu...sabia. Vamos dizer que eu sou bom nessas coisas" E riu um riso forçado. "Vamos tomar café da manhã? A melhor padaria da cidade fica logo ali na esquina."
Ignorando que eu já havia pago pelo café da manhã do hotel, decido de forma imprudente acompanhar o velho. Minha mãe responde minha mensagem com um "O que você está fazendo?". Aliviando as crises nervosas de dona Nilva, eu não contei que estava tomando café da manhã com um ex-detento.
Enquanto Athos bebericava seu café num copo americano, comecei a conversa com o velho.
"Você está pronto para falar de...Diolinda?"
Dessa vez, o velho apenas repousou o café sobre o balcão na padaria e me olhou nos olhos.
"Pra falar sobre Diolinda, preciso contar um pouco mais da minha história."
Caderno sobre o balcão, caneta pronta. Só esqueci o gravador, mas eu sabia que ali viria uma história que eu não poderia esquecer.
"Eu era policial também, como bem já lhe disse. Não tive uma vida tranquila até os vinte e pouquinhos anos não, a pobreza sempre me acompanhou. Mas, assim que consegui um ofício, as coisas começaram a melhorar. Com as meninas principalmente, não sabe?"
E sorriu. Que nojo.
"Eu nunca tive nada, mas comecei a ter algo. Na minha casa começou a ter coisa pra comer e beber, e eu também comecei a frequentar os bares, e isso me trazia felicidade. Ah, aquela felicidade sem fardo! Existe felicidade mais pura do que a falta de culpa?"
Eu anoto a palavra culpa no meu caderno. No momento, eu não sabia mesmo de que lado estava nessa história.
"Num dia desses, um dia bobo, foi que eu avistei a morena Suzana Diolinda. Não sei se os outros achavam ela bonita mas, para mim, ela era o céu."
Vanessa, do bar, havia mencionado o dia que Athos chorou no bar falando de um grande amor. Que talvez ele teria matado. Prevendo minhas deduções ou simplesmente lendo meu rosto, Magno continuou.
"Isso, menina, eu me apaixonei. Imagino sua desconfiança. Um velho vagabundo não haveria de amar, muito menos de matar. Mas não é dos crimes contra as mulheres que as prisões mais se enchem? Sim, eu me apaixonei por Suzana Diolinda."
"Seu Magno eu...eu não disse nada e..."
Athos deu uma mordida no seu pão com manteiga e bebericou o café novamente.
"Tudo bem, menina. Novamente deixei a emoção me ganhar."
Mais um gole.
"Depois de vê-la algumas vezes no forró que acontecia no bar do Zé, aquele mesmo de ontem, eu consegui a atenção de Diolinda. Dançamos a noite toda. Não tive coragem suficiente para beijar a moça, sabe como é, eu não tinha tanto jeito não. Mas aconteceu, no finzinho da noite. Então deixei ela na casa dos Caldeira, onde ela havia dito que morava e trabalhava, e nos despedimos. Começamos nosso caso de chamego ali, menina, e ainda escuto o som do perfume dela quando fecho os olhos."
Respirei fundo antes da próxima pergunta.
"Mas, então, o que levou o senhor...ou qualquer outra pessoa...a matar ela e os Caldeira?"
"Essa não é uma história de crime passional, tampouco uma novelinha das seis sobre amores que não deram certo. Digo e repito, Nana, tudo isso é muito mais estranho do que parece."
Acabamos o café, mas as perguntas ainda pulavam em minha cabeça. Mas no momento em que eu convidaria Athos para esticar a conversa, recebo uma ligação. Mãe. Essa, diferente de outras, eu precisava atender.
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O Incendiário
Misterio / SuspensoUma menina chega à uma cidadezinha do interior para encontrar inspiração para sua nova história, mas acaba escutando cada detalhe de um relato terrível: um crime que aconteceu há 30 anos e mudou a vida de todos ali.