Capítulo V  -  Laura Caldeira

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"Acordei naquele dia numa inocência quase proibida, menina. Só fiquei sabendo da morte do Coronel quando cheguei na delegacia. Um pisêro que só. A notícia da morte de Lionel me chegou como anestesia. Achei que ainda dormia, me belisquei antes de cair na real: Coronel Lionel foi assassinado na rua principal e eu estive em sua casa, na mesma noite."

Athos continuou guiando-me pelas ruínas do que foi um dia a casa dos Caldeira. Passamos por onde deveria ter sido a sala de estar e chegamos a um cômodo com porcelana marrom, onde, um dia, houve uma cozinha. Iria esperar o velho continuar o relato, mas a curiosidade ultrapassou mais uma vez o bom-senso.

"Magno, e como Diolinda recebeu a notícia? Como você não foi incriminado logo de cara?"

"Eu não sei, minha filha. Essa parte ainda me é nebulosa. Só sei que, de uma hora para a outra, eu me vi envolvido no caso. Na primeira oportunidade, fui até a casa dos Caldeira com mais um colega policial, iríamos ver se estava tudo em ordem. Na verdade, eu queria ver Diolinda. Covardemente, precisava pedir que ela não dissesse nada a ninguém, nada sobre o fato de eu estar naquela casa, na noite anterior. Mas ela não estava lá."

Minha cabeça rodava dentro do crânio. As palavras do velho Magno tomavam forma e me inebriavam, me transportavam para aquele tempo, como num filme noir de segunda categoria. Athos, no meu devaneio, era um jovem bonito, mais ou menos da minha idade. Ele usaria uma jaqueta de couro e um chapéu, mesmo no calor infernal de Andronópolis. E o relato estava chegando na cena em que o mocinho era injustamente incriminado e precisava salvar-se dessa situação.

Sentamos em duas cadeiras de metal que faziam parte de uma das únicas mobílias daquele cômodo, junto a uma mesa empoeirada. A luz do sol não alcançava direito aquele lugar, de modo que parecia bem mais tarde do que realmente era, envolvendo metade do rosto do homem em sombras.

"Minha filha...se você pudesse mudar algo em seu passado, o que mudaria?"

Fácil.

"Não teria feito Letras. Teria estudado Engenharia da Computação ou algo assim, mas o curso de Letras...ah, esse curso baixo. Amor e ódio. Mas ainda assim...foi o curso que eu não consegui evitar. Ele me escolheu."

Athos sorriu de canto de boca, como quem já suspeitava da resposta.

"E mesmo assim você o fez, não é? É como as coisas são. Você nunca acordou com a sensação de que não deveria estar ali e mesmo assim estava? Que não deveria fazer algo, que não queria fazer algo e mesmo assim o fez?"

Me arrepiou os pelos da nuca.

"Eu...não sei. Eu não sei nem como eu vim parar aqui."

De repente, me dei conta do lugar em que eu me encontrava e um terror começou a apoderar-se de mim. Não era medo do ex-detento, eram as palavras da minha mãe que ressoavam na minha cabeça.

"O que você está fazendo da sua vida, Narjara?"

"Não quero te assustar, menina, foi apenas uma pergunta pra dar corpo pra história. É que as coisas que aconteceram lá atrás ainda correm atrás de mim. Mas o que eu fiz lá, mesmo as coisinhas mais bestas, foi o que me trouxe até aqui. Aí quando eu me alembro do passado, dá pra ver que o único jeito de mudar o futuro é fazendo as coisa do jeito certo lá no passado. Não é?"

Se eu pudesse ter feito qualquer coisa da minha vida, eu teria feito? Não sei. A escolha as vezes parece um truque da sociedade, uma mentira. O livre-arbítrio não existe quando quem lhe controla é essa voz maldita que chamamos de consciência. Mas Athos me despertou, novamente, desse devaneio.

O homem levantou-se e foi até uma parede. Aparentemente, nada havia ali, mas por baixo de uma das cerâmicas, que ele soltou com um pouco de dificuldade, o velho Athos tirou uma garrafa.

Athos abriu o conteúdo, que ainda estava intacto, e o cheirou.

"Como tudo na vida, será que esse uísque apodreceu ou ficou melhor com todo esse tempo?"

"Como você sabia desse esconderijo?"

Athos tomou uma dose direto do bocal e empurrou a garrafa em minha direção. Eu não tomei.

"Uns dias depois do assasinato do Coronel, eu e o outro policial viemos atestar o estado da casa, ver se algo havia sumido, se alguém tentara mais alguma coisa ali."

Athos tomou a garrafa de volta para si e sorveu-se de mais um gole.

"Mas nada havia de errado. Exceto pela atitude de Laura. Ela não parecia exatamente triste, era uma viúva confirmada, como quem vê o excesso de chuva destruir a plantação e agradece o fato de um dia ter chovido ali."

Athos suspirou.

"Eu continuei investigando a casa, dias depois. Suzana não estava em lugar algum. Eu continuei a procurar a moça em tudo quanto é canto. Uma semana depois, uma das vizinhas me disse que ela andava com um sujeito estranho. Um careca."

"Ela desistiu de você?" Perguntei, como quem acompanha a novela das seis.

"Não sei, menina. Sei que comecei a frequentar demais essa casa, com a desculpa da investigação. Eu tentava encontrar pistas de quem havia matado o Coronel. Bom, na verdade, eu esperava encontrar Diolinda algum dia ali, mas outra coisa aconteceu..."

Athos fez uma pausa dramática, como que antevendo o clima que eu daria para esse relato.

"Dona Laura foi cada vez mais me convidando para ficar. Suzana estava com outro e minha cabeça estava confusa. Então, num dia desses, ela me mostrou o esconderijo das bebidas, me contou sobre sua vida, colocou sua mão sobre a minha. E eu fiquei."

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