Capítulo I - A Culpa

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Encontrar Athos Magno foi uma tarefa quase difícil. As pessoas daquela cidadezinha recusaram-se a dizer aonde o ex-detento encontrava-se, não sei se por medo ou por não se importarem nem um pouco. Convenientemente, fui achá-lo no boteco mais próximo ao hotel.

A jovem dona do boteco, com aqueles olhos de interior, disse que a figura de Magno era recorrente ali. Aproveitei para pedir mais informações. Ela voltou a lavar copos. Tento mais uma vez. A moça, Vanessa, bufou, limpou as mãos no avental e confessou.

"Olha, eu não costumo falar assim não. Mas teve uma noite que Seu Magno sentou aqui e me contou muita coisa, depois de alguns goles, não é. Eu sei que ele foi preso já, mas não me parece sujeito ruim não, senhora. Ele só é meio...desajustado.

Nesse dia, ele começou a chorar sozinho. No rádio tocava uma modinha do Tião Carreiro, achei que era saudade do passado, mas ele começou a falar de uma mulher que ele gostava demais. Falando sozinho mesmo, não comigo. Acho que ele matou ela. Foi por isso que ele foi preso, não é?"

Disse que não sabia e me sentei. Foi o tempo de uma cerveja naquela tarde quente da cidadezinha de Andronópolis para escutar a voz da dona do bar cumprimentar alguém e dizer:

"Seu Magno! Tem uma moça ali atrás do senhor."

O velho olha para mim como se eu fosse a última coisa na Terra. Não sei se pela minha pele ou se pelo meu interesse nele.

Do lado de cá, a imagem que eu via dele começa a conflitar-se com a aparência imaginada: um homem decrépito, talvez um tapa-olho, as unhas sujas e olhar sombrio. Mas a visão tarantinesca foi substituída pela a de um senhor de camisa florida e bermudão, com os cabelos pacientemente arrumados para trás e um olhar sereno.

"Esperava alguém mais velha."

Suas primeiras palavras já revelavam a estranheza da situação. Não sei se ele reparou que minhas pernas tremiam por debaixo da mesa. Me apresentei: Nana Medeiros, escritora (ainda me sinto embaraçada com o título).

"Sr. Magno, estou aqui para escutar a sua história."

O velho sorriu e disse:

"Eu sei."

Então, enquanto ele ajeitava-se na mesa e pedia mais um copo, presumindo que podia partilhar da minha breja, comecei a retirar o gravador e o caderninho da bolsa.

"Não sou jornalista. Li sobre sua história e queria saber sua visão dos fatos e, se me permitir, escrever algo baseado na sua experiência. Não sei o quão estranho isso possa parecer mas..."

"Não há motivo para explicar-se, querida. Eu já sei o que veio fazer aqui. Estava esperando mesmo essa hora chegar. A história dos assassinatos...bem, como deve saber, eu já paguei pelos meus crimes."

Sim. Eu sabia. O desleixo não me permitiu uma pesquisa fenomenal, mas eu tinha noção do que havia ocorrido. Sem poluir o meu método criativo, que me convenci que seria sair de Brasília e cair numa cidadezinha de Goiás para entrevistar o sujeito. Durante uma semana inteira. Parece sensato, não é?

"Minha querida, posso te contar uma história antes?"

Claro.

"Qual a cara da culpa? A gente acha que é óbvia, não é? Todo mundo sabe a cara do culpado. Veja bem, vou lhe contar um causo. Meu pai tinha uma mercearia. Um dia, um ladrão entra, leva o dinheiro do meu velho e sai vazado. Meu pai não deu muito tempo e gritou "ladrão!" porta afora. Umas horas depois, pegam um sujeito, um crioulo. E tiram uma foto da sua cara feia, que saiu estampando os jornais no outro dia, com a manchete 'Cara de bonzinho, mas ladrão!'.

Todos bradavam que bandido depois de pego ficava com cara de bonzinho mesmo. Mas meu pai viu aquilo e começou a reclamar, esbravejar, enquanto lia o jornal. Não era aquele o ladrão, mas talvez já fosse tarde. Então, por muito tempo, fiquei imaginando que se o sujeito tinha cara de inocente, ele realmente o era. Mas, hoje, eu mesmo já não sei. Não sei. Mas e para você, e para os outros...

...Qual a cara da culpa?"

Não respondi, é claro. Eu não sabia.

"Te assustei? Não foi a intenção. Só tenho três coisas para falar e pedir. A primeira, é que você tome por verdade tudo o que eu disser. A segunda é mais difícil, você precisa me prometer que realmente vai escrever minha história e fazer o possível para que ela seja publicada. A terceira não é um pedido, mas uma confissão: Athos Magno é um homem inocente. E entendendo que a menina aceitou a primeira condição, espero que tire esse olhar de confusão do rosto e que acredite em mim."

Dei um gole muito maior na minha cerveja do que costumava dar. Assim começa a história do Incendiário.

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