Jack & Sangue

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Jack era uma verdadeira aparição, um espectro pálido e magro, várias cabeças mais alto que qualquer um naquela sala. Mesmo pequenos perante ele, os homens lhe olhavam com sede e fome, querendo seu sangue e sua carne para satisfazerem seus próprios bolsos egoístas.

Jack não tinha saída, sabia exatamente como chegou àquela situação e isso o fez temer ainda mais a raça humana.

"Humanos são os únicos animais que matam, ferem, sabem as consequências de seus atos, com o que irão pagar e até quanto irá doer e ainda assim o fazem", ele dizia sempre que alguém lhe permitia falar.

Os homens deslizaram seus dedos sobre as travas e depois os fizeram dançar sobre os gatilhos. Nenhum atirou de imediato, esperavam alguma reação estranha de Jack - ele sempre tinha alguma reação estranha.

Lewi, o maior dos homens, cujo nome não combinava em nada com sua cara distorcida e a cicatriz que a traçava de um lado a outro, emitiu um grunhido e assim roubou a atenção de todos.

Os garotos, que olhavam pelo buraco da fechadura, tentavam não fazer nenhum único chiado, estavam tão assustados que poderiam gritar à qualquer momento. Ninguém sabia da existência dos garotos, ninguém a não ser Jack.

Era assim que deveria continuar.

Um dos homens, Muhammad, o de longos cabelos negros que escorregaram para fora de seu capuz vermelho-sangue, escondido à penumbra como uma versão corpulenta da Chapéuzinho Vermelho, uma versão que mataria o Lobo antes de levar doces para a velha senhora que o aguardava ansiosamente - e, provavelmente, mataria a senhora também - parece pronto para descarregar sua munição no corpo magro de Jack. Ele guarda uma história triste de mais para a situação, mas pensa nela como um incentivo.

O mais costurado dos homens, vestindo apenas calças curtas que apertavam seus tornozelos e chinelos azuis que pareciam pequenos para seus pés largos, fez um sinal com os dedos: unindo o indicador ao polegar e apontando para frente como se um bala fosse sair de entre a carne e a unha. Seu nome era Olive, a consequência da embriaguez do pai na noite em que lhe deram um nome, mas todos o chamam de Mason - pois um dia ele apareceu e disse "Me chamem de Mason". Ninguém sabe se isso tem ou não a ver com um de seus sobrenomes ou nomes do meio - sabe Deus quantos ele pode ter.

James Gurney, o único sem cicatrizes, só buracos, piscou algumas vezes antes de tirar uma faca do coldre - ele não gostava de armas de fogo, apenas aquelas que lambuzam suas mãos com o sangue quente de quem quer que ele venha a matar. Não é bom chegar tão perto dele, todos sabem disso - por isso só há buracos.

Jack se manteve parado, observando os dedos e os olhos, preparando-se para saltar ou esquivar. Como dito, não haviam saídas ou alçapões sob seus pés, nem sequer com o que revidar.

Cada um daqueles homens tinha uma razão para pressionar aqueles gatilhos e Jack sabia.

Lenta e silenciosamente, as balas abriram buracos em Jack até seu corpo cair.

Os homens foram embora, deixando a bagunça para trás, mantendo suas pegadas sangrentas no chão como um aviso. Os garotos abriram a porta e choraram sobre o corpo vazio e submerso de Jack. Um deles pediu desculpas, outro, o desafiou a voltar a vida.

Mais tarde, eles tiveram de cavar uma cova no quintal e arrumar a bagunça que era Jack. O menino mais novo (só por alguns minutos) encarou o buraco no centro da testa de Jack e o buraco pareceu lhe olhar de volta - assim como fazem os abismos.

Ele nunca esquecera aqueles túneis retos, sem fim, que atravessaram o peito de Jack até chegar ao vazio do outro lado.

Fora ele quem limpou a poça e as pegadas vermelhas.

Fora ele quem chorou por toda a noite e pela manhã, também.

Fora ele quem se manteve calado por um longo infinito, esperando que as palavras um dia voltassem à seus lábios.

Ele sempre temia que o irmão também acabasse com aquela terceira órbita vazia entre as órbitas abrigadas por olhos tão cinzentos quanto os de Jack, mas, por alguma razão, ele sempre soube que acabaria daquele mesmo jeito se continuasse temendo tanto dar o próximo passo.

Fora ele quem decidiu ir embora daquela casa manchada.

Também em silêncio, o mais velho (só por alguns minutos) seguiu o irmão como um cão mandado, esperando que o próximo passo o levasse de volta para aquela vida que tinham antes de sua mãe morrer em silêncio no quarto azul e seu pai ser perfurado como um alvo inútil.

Fora ele quem se negou a desistir quando o tempo fez seu peito arder e suas pernas balançarem.

Fora ele quem disse "foda-se" quando não lhes deram trabalho.

Fora ele quem decidiu seguir os passos de seu pai e matou o primeiro homem por dinheiro.

Fora ele quem jogou a dor e as lembranças no lixo, para viver sua própria vida da sua própria maneira.

Fora ele quem disse adeus, vários anos depois, e embarcou num trem mal acabado que seguia para algum lugar à leste daquela cidade torta onde eles se esconderam por tanto tempo.

    Fora ele quem disse adeus, vários anos depois, e embarcou num trem mal acabado que seguia para algum lugar à leste daquela cidade torta onde eles se esconderam por tanto tempo

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O tempo não foi em nada bondoso, as feridas na mente do mais novo (só por alguns minutos) não estão totalmente cicatrizadas. São manchas vermelhas esticadas em sua testa e peito, esperando por algo que ninguém sabe, nem ele mesmo, para que sangrem novamente.

Fora ele quem precisou morrer para continuar sobrevivendo.

Enquanto Formos Jack (Raison D'être)Onde histórias criam vida. Descubra agora