"Bem-vindo à selva"

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___ Brasil, América Latina. 2033 DC

Irumi ainda tentava entender direito o que estava acontecendo, mas o encontro violento da sola emborrachada com seu estômago a fez desabar mais uma vez. Dessa vez o chute fora mais sutil, não lhe roubara todo o ar como antes, mas foi suficientemente forte para forçar seus joelhos a se dobrarem em um baque surdo no chão. O cheiro úmido do piso cimentado era mais agradável do que aspirar aquele fedor nauseante vindo dos militantes. Demorou menos tempo para perceber que estavam todos ali. Antes contou três, mas agora viu que haviam chegado os outros dois. Pelo cheiro forte acabaram de urinar, talvez em si mesmos. Seu ouvido ainda zumbia devido a porrada que o menor deles havia lhe dado na têmpora. Aquilo doeu, mas podia ter sido bem pior.

Tentou ajeitar os braços de modo que o arame afrouxasse um pouco a pressão, mas era inútil. Seus braços foram amarrados nas costas com tanta força que pareciam estar atrofiados. Virou o rosto colado no chão frio e viu mais onze pessoas em situação semelhante a sua. Mulheres, crianças, homens, velhos. Uma família, talvez. Todos os rostos olhando fixos para os cinco algozes de pé. As luzes das lanternas no chão iluminavam os militantes com uma aura pavorosa, projetando suas sombras na parede pichada a suas costas. Daquele ponto as cinco sombras pareciam uma coisa só, uma boca gigante com dentes pontudos. O silencio era atormentador. Ainda que ninguém estivesse amordaçado, as investidas violentas do militante baixinho eram um aviso mais do que claro e não foi necessário pronunciar nem uma única palavra para fazer o garotinho de cabelo cacheado parar de chorar. Irumi também chorava, ainda que não tão copiosamente quanto a criança antes de receber uma bofetada. Apenas sentia as lágrimas escorrendo silenciosamente. Esperneou em um primeiro momento, mas depois parou. Até agora os homens só riam e fumavam. Um deles coçou grotescamente a virilha por dentro da calça e em seguida enfiou os dedos no nariz da velha assustada. Assustada com razão. Não era todo dia que se tinha um rifle AK-47 apontado para sua cabeça em uma distancia tão curta. Embora o espanto maior de Irumi era ver que a arma era bem antiga, fabricada em algum período entre os anos de 2013 ou talvez até antes. Estava quase duvidando se aquilo funcionaria mesmo. Não estava disposta a apostar.

De repente o outro homem entrou no quarto pichado. Desproporcionalmente gordo e com a barba tão suja quanto suas calças mofadas. Arrastava alguém que em um primeiro momento Irumi julgou ser um cadáver, mas depois notou que respirava muito ruidosamente para estar morto. Era um homem jovem, tão sujo de terra quanto de poeira, vestia couro e tinha o cabelo bagunçado em um emaranhado de fios rebeldes, tão longos que arrastavam no chão, como uma longa crina negra e malcuidada, empoeirado de barro como as botas de cano alto que usava. O pobre coitado parecia ter sido arrancado de dentro de um poço, pois nem camisa usava e o pouco de pele branca que se via surgia onde a terra não cobriu. Não teve tempo de reparar mais no novo prisioneiro, pois sua atenção foi direcionada para algo que o homem barbudo trazia na outra mão. Parecia um violão, talvez uma guitarra, ou pelo menos o braço dela. O cabo não era feito de madeira como geralmente se espera ver em um instrumento de corda. A textura era metálica e podia se ver perfeitamente os rastros de solda. Quando o homem barbudo se aproximou arrastando o prisioneiro para junto dos outros reféns, ela viu que o comprimento daquele instrumento era absurdamente grande para um braço convencional. Deveria ter pelo menos uns noventa centímetros e o formato de um facão, embora o restante estivesse embrulhado em tiras de couro. Definitivamente aquilo não servia para fazer música.

O recém chegado foi posto de joelhos junto a um casal refém, ao mesmo tempo que Irumi foi violentamente obrigada a levantar o rosto do chão e retornar para sua antiga posição submissa. Ela não conseguiu ver o rosto do estranho homem, já que a cabeleira lhe cobria a face cabisbaixa, mas notou que todos ali foram dispostos ajoelhados em uma espécie de fila. Na realidade lembrava mais um paredão de fuzilamento.

A REDENÇÃO DOS MALDITOS  | A Cidade dos Santos EnforcadosOnde histórias criam vida. Descubra agora