Irumi conseguira escapar. Estava viva. Mesmo com o ferimento na perna latejando e a dor nos calcanhares, estava viva, e isso era o que importava. Ficou ali escondida, embrenhada na mata densa por talvez mais de uma hora até ter certeza de que ninguém mais a perseguia - se é que em algum momento alguém estivesse.
O capim cortava sua pele a cada passo que dava em direção a mata fechada. Estava mais suja que nunca, empoeirada e os cabelos castanhos estavam tão secos que as pontas espetavam seus ombros. Olhou para a calça jeans que uma vez fora preta, mas agora se perdia em meio tom entre o cinza desbotado e o marrom escuro da lama. Acima do joelho a ferida pulsava vermelha e vivida bem no centro da mancha de sangue. Sabia que aquilo iria infeccionar.
O sangue ainda estava quente, por isso Irumi não perdeu tempo. Avistou no meio do mato a chamada erva cura - Açu-Aaran em sua língua materna - e retirou uma vasilha de alumínio de sua mochila. Apanhou a planta de folhas roxas e conferiu para ver se as manchas amarelas no caule estavam lá. Açu'Aaran podia ser facilmente confundida com Açu'Ayti e fazer emplasto com a erva errada poderia gerar complicações sérias, desde a não cicatrização e até em casos piores a putrefação da pele em cerca de horas. Pelo menos era o que seu avô dizia.
Atirou as folhas dentro da vasilha e começou a esmagar as folhas com uma pedra que encontrara no chão. Só precisou de umas poucas estocadas até que as folhas se tornarem uma pasta violeta e cremosa. Pegou aquela substancia do fundo da vasilha e passou por todo o ferimento em quantidades generosas. De inicio não sentiu nada mas sabia que em questão de minutos ia começar a sentir o frio desconfortante que a pomada gerava. O cheiro doce de morango que vinha do emplasto fez sua barriga roncar e desejar poder comer qualquer coisa além daqueles malditos pães velhos.
Amarrou uma faixa de pano sobre a ferida, prendendo o empasto e cobrindo o rasgo na perna. O frio chegou mais repentino do que ela esperava e foi aumentando na medida que os minutos passavam. Por enquanto a sensação trazia alivio, mas logo se tornaria um incomodo.
Recostou-se em uma das arvores secas e observou a vegetação. Era um contraste quase irônico. O chão coberto de capim seco e lama, poucas plantas cresciam e muitas delas eram tidas como mato. A própria Açu'Aaran seria ignorada por qualquer outra pessoa que não conhecesse seu poder curativo, ainda mais que era uma planta comum daquela região. Mas ainda assim, mesmo com o solo forrado por plantas rasteiras, todas as arvores eram secas e escuras, tirando uma ou duas que resistiam em manter suas copas cheias. Os galhos se entrelaçavam e cobriam o céu como garras atrofiadas, protegendo da chuva e da pouca luz, quem quer que estivesse em baixo.
Quando o mal-estar causado pelo frio da medicina parou, Irumi teve certeza de que já poderia retirar o curativo. Se passaram pouco mais de três horas desde que escapara do tiroteio. Nesse meio tempo, conseguiu empurrar metade de um pão goela a baixo e cochilou por uns quinze minutos, tempo mais do que necessário para recuperar as forças e caminhar. Quando removeu o pano de cima da ferida, encontrou o machucado totalmente cicatrizado, com apenas uma pequena marca do corte, coisa que sumiria com o passar do tempo. Limpou o restante da pomada e atirou o pano para longe. Arrumou suas coisas na mochila e observou mais uma vez o embrulho de couro. Fedia terrivelmente e estava coberto de poeira. Sua curiosidade acerca do pacote não era apenas em descobrir se era ou não um violão, mas sim no que mais poderia haver de útil para ela. Pegou a sua adaga e se preparou para rasgar as tiras de couro. O cheiro era forte e lembrava uma mistura nauseante de suor, lama e borracha queimada. Observando com mais atenção Irumi concluiu que realmente não havia zíper ou feixe, nem qualquer outro sinal de abertura. Era como se as tiras de couro tivessem sido derretidas diretamente sobre conteúdo do embrulho, como uma segunda pele. Sem se demorar mais ela fincou o punhal na outra extremidade do pacote e encontrou uma resistência maior do que da primeira vez. Era muito mais denso e quase tão duro quanto borracha. Era como tentar atravessar uma faca em um tronco de arvore. Puxou a faca para fora com muito esforço e observou pela nova fenda que se abriu. Viu algo brilhando lá dentro. Era evidentemente de metal, pois reluzia ao menor sinal de luz. E tinha algo escrito. Não conseguia ler muito bem mas, conseguiu enxergar sete letras dispostas no texto:
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A REDENÇÃO DOS MALDITOS | A Cidade dos Santos Enforcados
General FictionO ano é 2033. O mundo se encontra mergulhado em conflitos entre nações, lutando por recursos naturais já escassos em boa parte do planeta. Um manto de poluição cobriu o globo, escondendo o sol sob um véu cinza nos últimos 6 anos. As grandes nações...