O formigamento na ponta dos dedos estava irritante, mas não tanto quanto os espasmos nos pulsos. Segurar a alça agora se mostrava uma dura tarefa, ainda mais quando tentava equilibrar o resto do corpo sobre os joelhos que insistiam em dobrar-se pouco a pouco. Nunca imaginou que pudesse ser envenenado por uma substancia tão ridiculamente banal quanto veneno de sapo. Ainda mais julgando que a última espécie de sapo daquele continente fora extinto a uns quatro anos. Subestimou a garota nativa. Deveria ter matado ela logo que pode, mas como sempre seria algo desnecessário, sem falar em extremamente decepcionante. No fundo, aquela situação o agradava. Levaria algum tempo até seu corpo conseguir entender o funcionamento da toxina e começar a expeli-la. Foi assim com o arsênico, com o sarin. Desse modo estaria imune ao veneno em caso de um segundo contato. Mas tinha que admitir, que de todos até então, o veneno de sapo estava se mostrando bem persistente.
Irumi ainda o fitava com uma expressão fixa. Olhando fundo e refletindo sobre o que ele quis dizer com "pacto". Sua infância inteira foi rodeada de tradições, dos antepassados Mura, desde a cultura e costumes passando pelos mitos até os ritos funerários. Quando chegou na adolescência preferiu se afastar de tudo isso e viver uma vida normal, abandonou as tradições e se dedicou a modernidade. Aos poucos isso foi matando seu lado espiritual, que seria sepultado por completo com a chegada da guerra e a chacina de seu povo. Sua fé nunca foi totalmente convicta. Por mais que os pajés insistissem para manter viva a crença nos espíritos da natureza e nas ninfas da floresta, nos fantasmas dos animais e nas entidades presentes nas plantas, poucas foram as vezes que Irumi fechou os olhos e rezou para qualquer divindade, fosse xamã ou não. Buscava se basear sempre no concreto, não buscava fugas ou confortos pois sabia que se em algum momento existiu um deus, ele os abandonara a muito tempo.
- Um pacto? Quer dizer um trato com forças do além? - ela perguntou cética.
- Isso mesmo. Já ouviu falar sobre grimórios? É provável que não. Nesse fim de mundo que você está, nem você, nem os outros coitados daqui devem saber o que é. Então...presta bem atenção...vou te dar uma aula sobre o que existe além da cortina, fedelha...
Irumi continuou olhando atenta para Slasher que cambaleava, ameaçando cair a qualquer momento.
- Há anos atrás, muito antes de seus pais sonharem em por você no mundo... logo no início dessa guerra.... os poderosos do mundo, começaram a cavar em todos os cantos do planeta procurando recursos naturais que dessem conta da demanda...isso claro, já que eles próprios detonaram o pouco que tinha. Bom, enfim...durante as explorações, algumas coisas velhas foram aparecendo aqui e ali. Entre esse monte de lixo arqueológico, apareceram um monte de livros bem esquisitos, sem capa, nem autor. Eram manuais que misteriosamente prometiam poderes sobre-humanos e riqueza para qualquer louco de pedra estivesse disposto a realizar as instruções bizarras que vinham escritas neles. Todos os livros envolviam coisas medonhas, indescritíveis...mais do que sacrificar galinhas ou bodes, ou espetar pregos em frutas..... não, era algo bem pior. A maioria das pessoas que achavam esses livros guardavam pra elas, claro... eu guardaria. Num mundo onde a única certeza que você tem é que se não morrer amanhã na guerra, vai morrer daqui a uns meses sem água ou comida, acho que qualquer merda que aparecer a gente se agarra. Pois bem...as pessoas que topavam fazer as bizarrices nesse livro de receitas dos infernos, conseguiam invocar... e eu estou falando em materializar... um demônio.
Irumi se contorceu desconfortável. A maneira como Slasher contava lhe causava arrepios.
- Ah mas não era qualquer demônio...era o autor do grimório. Esses livros na realidade são praticamente diários pessoais desses bichos. E não se engane, garota... quando eu falo demônio não é aquele que a antiga igreja gostava de ilustrar para assustar os fiéis...não... são coisas bem piores, e quando você chama uma coisa dessas para o nosso mundo, ele te oferece um acordo: uma parcela do poder dele ou qualquer outro favor que te faça se dar bem na vida... e em troca você cede sua alma para ele.
VOCÊ ESTÁ LENDO
A REDENÇÃO DOS MALDITOS | A Cidade dos Santos Enforcados
General FictionO ano é 2033. O mundo se encontra mergulhado em conflitos entre nações, lutando por recursos naturais já escassos em boa parte do planeta. Um manto de poluição cobriu o globo, escondendo o sol sob um véu cinza nos últimos 6 anos. As grandes nações...